O ritmo da melodia

Por mais que eu não considere isso o melhor fio da meada disponível para um autor, preciso me lembrar que essas páginas estão mais perto de um diário que de um best seller. Não pense que estou me nivelando por baixo e não considere me enviar uma mensagem de ânimo. Por mais que eu tenha muita expectativa com um futuro mais promissor que o presente, o que me resta é este presente. E ele, em si, é homonimamente um presente. Já falei isso há não muito tempo, certo?

Na noite do primeiro natal, tudo apontava para um glorioso futuro que nunca se materializou na terra até aqui. Porém, tudo o que José, Maria, o burrico, o hospedeiro, os pastores e os animais tinham era o presente. Que era glorioso pelo futuro que guardava em si, mas não deixava de ser um presente fedorento e desengonçado. O cumprimento de todas as profecias de séculos, guardadas no livro mais sagrado de um povo, não era nada perto de “pomposo”.

O nascimento de Jesus insistia em me trazer lições enquanto eu seguia aprendendo sobre como lidar com a continuidade do meu projeto. Eu também não considerava escrever sobre os bastidores dos capítulos nos próprios capítulos, mas aqui estou eu, contando que naquele dezembro de 2020, eu queria muito executar um projeto de Natal, e ninguém parecia muito interessado. 

2020… O ano que nunca acabou e que muitos consideram que jamais existiu, mesmo que suas consequências sejam drásticas e irreversíveis no interior e exterior da sociedade. Eu queria terminá-lo bem e tinha decidido comigo mesmo que gostaria de celebrá-lo. Um ano cheio de conflitos e controvérsias, onde tive que levantar a voz e protestar a respeito de tantas coisas, onde foi necessário tirar coisas que estavam debaixo dos tapetes de tantos relacionamentos. Fazia sentido que o natal não fosse tão brilhante e fantasioso. Fazia sentido relembrar a todos sobre seu real significado, por mais que isso fosse chocante para algumas pessoas.

Quando comecei este projeto, eu defini meus 12 capítulos um a um. Pessoas com quem eu adoraria trabalhar e que tinham um significado marcante no meu coração. Mari Galindo era uma ideia antes mesmo de eu receber uma proposta de trabalho de sua mãe. Em algumas ocasiões, eu pude fazer pequenos “quebra-galhos” em um de seus projetos mais especiais: The Word Has Power, ou meramente thwp, um blog que ela sempre teve e reativou durante as acaloradas discussões de 2020.

Depois de receber a terceira ou quarta negativa por uma parceria de Natal, eu considerava que o thwp era uma porta fechada também. Mari aguardava se liberar de seus projetos de fim de ano e me chamou numa noite digna de um moodboard: uma tempestade. Entre um raio amarelo e outro, falamos sobre um post que ela queria fazer. A ideia me animava porque, há algum tempo trabalhando, eu já não fazia “arte pela arte” e temia desaprender este processo que sempre foi tão importante para a minha vida criativa. 

O desafio era trazer uma imagem chocante: as pessoas transformaram a mensagem de Jesus num produto, que é vendido durante o ano todo com as mais requintadas estratégias de marketing. Este mesmo produto é adaptado para todas as classes sociais, gostos e bolsos. E todos os anos, seu nascimento é uma grande festa que está totalmente alienada de sua mensagem: amor, empoderamento, valorização, respeito e redenção. A imagem gráfica que a Mari me trouxe foi o clássico Menino Jesus do presépio, sorridente e de braços abertos, numa caixa de brinquedo, vendido nos mais diversos pontos comerciais. Tudo seria curto e grosso.


A execução foi mais rápida do que eu imaginava. Minhas pesquisas me trouxeram os itens para a caixa, o próprio brinquedo e texturas necessárias. Faltava uma peça 3D única e renderizada para este fim. Meu ponto fraco… Ponto forte do meu irmão biológico, um dos melhores modeladores 3D que conheço. Natal é família, certo? Nada como a primeira parceria artística entre eu e meu único irmão acontecer em volta desta ocasião. Fiz uma ligação para avisar que havia enviado seu presente de Natal, enquanto fiz o pedido por uma caixa de brinquedo. Ele considerou o pedido simples, e naquele mesmo dia eu já tinha o suficiente para fazer esse híbrido de design de produto e um post para as mídias sociais. 

A imagem em si era forte o suficiente, então não trabalhamos em textos extensos, mas focamos na força da imagem. Mari me guiou sobre o texto dos “pop-ups” na caixa, para nos lembrar um brinquedo importado dos vários que tivemos quando crianças, nos fins da década de 90. Tudo era irônico e azedo. Conexões com a vida de Jesus e a imagem popular de um mero menino pobre numa manjedoura. Nós sabíamos que Ele é bem mais que isso, mas o foco era reforçar a mercantilização da fé, e tudo poderia ser arrematado em letras douradas, simulando folheado dourado e faca especial: baby Christ. Mesmo o uso do inglês no nome principal do produto não era mera coincidência.

Trabalhando o melhor que aprendi em montagens e mescla de imagens, cheguei aos resultados finais de modo muito empolgado e espontâneo. A prateleira da loja de departamentos parecia muito natural, enquanto a loja clássica de brinquedos misturava as melhores lembranças natalinas da infância com um toque de realidade. O momento atual, máscaras e pandemia estavam numa simulação da própria 25 de Março, um dos símbolos do consumo das classes populares, onde o comércio do natal gera milhões, de forma formal ou informal.

 

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Como naquela primeira noite em Belém, esse projeto não se tratava do presente, mas sobre um futuro que nem fazemos ideia do que seria. Esse não foi um projeto de ampla divulgação, e no fim eu considero que ele causou uma certa repulsa em muita gente, que ficou incomodada ao ver a realidade tão figurada: o menino Jesus produzido em série, dentro de caixas. Enquanto os pastores olhavam o misterioso coral de anjos na colina, anunciando a chegada do Messias, o sentimento era o mesmo. Uma realidade eterna se apresentava de modo figurativo, e o estranhamento era natural. Paz na terra num mundo em guerra? Era incomum para eles e parece incomum até hoje. Enquanto a melodia celeste falava do futuro, a canção tinha um ritmo no presente: o som de José batendo muitas portas. Isso me encoraja a seguir fazendo um compasso aqui para o que se canta no céu sobre o futuro: seguirei batendo muitas portas, e tenho certeza que verei milagres ao adentrar às poucas que se abrirem.

Leia o Especial de Natal do TWHP aqui.
Veja este projeto completo mo meu Behance.