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A manhã de inverno era cinza e implacável sobre o distrito de St. Leonard, enquanto as calçadas pareciam um tapete de espelhos, refletindo as luzes dos veículos que transportavam todo tipo de gente: criminosos, inocentes, testemunhas, magistrados e parentes de detentos. Em seus costumeiros carros de aplicativo, jornalistas também chegavam, tentando emendar histórias, extrair furos ou informações sobre algum caso que passava (de uma forma, ou de outra) por aquele lugar: a maior penitenciária do estado. 

O portão principal da prisão se erigia no meio de uma grande muralha que, naquela manhã, conseguiu camuflar-se ao céu no mesmo tom cinzento. Atrás dele, um verdadeiro exército de trabalhadores se movia, com grande esforço, para manter a carceragem funcionando. Isso é mencionado por pouca gente a respeito do sistema prisional: uma multidão é necessária para que um determinado grupo de pessoas não ameace a sociedade com sua presença nas ruas e possam cumprir suas penas com o mínimo de dignidade. Dois destes invisíveis conversavam junto a um dos grandes janelões de vidro que eram o símbolo do hall social daquele lugar que, em essência, não tinha nada de receptivo:

— Eu acho que você nem viu, mas hoje deu na televisão que já vão dois anos do caso do menino… Aquele do Coração.

—  Pior que, dia desses, minha mãe estava comentando sobre o tal do Nosso Coração. Eu nunca vi. Ela encheu uzói de lágrima, lembrando como aquele coração era bonito e era um orgulho aqui na cidade. Tu sabe que ela tem Alzheimer, né? Então a bichinha nem tem noção que, uma hora dessas, aquele monte de cristal já virou fortuna nas Filipinas.

—  Rapaz, que coisa.

—  Agora, vem cá? Tu conhece o menino e eu também. Tu acha que ele é culpado dessa história? Eu realmente penso que isso é gente graúda que botou o bichinho pra pagar pelo que ele não fez.

—  Homi, eu não acho que o menino seja essa inocência toda. Mas, nessa história, esse município todo sabe de quem é a culpa…

O serviçal tem seu pensamento interrompido por algo que vê através do vidro da janela, por onde – até aquele momento – só conseguia ver a claridade daquela manhã de inverno. O branco de seu campo de visão foi interrompido por um ponto vermelho, que se tornou um carro que lhe era conhecido, e o fez arregalar os olhos. Depois dessa pausa de observação, prosseguiu:

—  … Porque tu sabe que todo criminoso ama voltar para a cena do crime. 

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7 horas da manhã. E quarenta minutos. Na vida comum do Jeff, hora de acordar. Mas, se comparando ao que costumava viver quando ainda era apenas um artista tentando impulsionar sua carreira pelos Salões de Arte pelo país, era madrugada. Sempre que abria os olhos, estava acostumado a ver a notificação de um “Bom Dia” costumeiro em seu telefone. Por estar vivo, abriu os olhos naquele dia, não devido a uma canção conhecida num despertador, mas, a um grito:

—  Acorda! A vida não é um clipe da Taylor Swift e eu já estou cansado de bater palma para maluco dançar. Você perdeu a hora das suas atividades de novo, o que pode ter certeza que vai te garantir mais quilos a menos, mas de uma forma nada saudável. Vamos logo porque não tenho o dia todo!

—  Bom dia para você também, Cabo Cruz.

Desajeitado, Jeff tenta se localizar em sua cela. Ainda estava sozinho ali e isso era parte da sua sentença: não ter com quem dividir a vida na prisão. Esse foi um entendimento do Promotor do Ministério Público como sua verdadeira punição: o isolamento. O ponto é que, quase três anos depois de entrar naquele lugar, ele já estava acostumado a desenvolver suas próprias companhias, e burlava a crueldade de seus algozes, do seu jeito. Tomou a carta escrita na noite anterior, devidamente envelopada e entregou ao Cabo Cruz, sem prestar muita atenção em sua expressão irritada. 

Caminhou em direção ao salão central da prisão, sem despertar a atenção de quem o observava. Algumas muitas celas, agentes que tentavam sorrir-lhe mas eram impedidos pela apatia em seus olhos. Um homem latino, ombros largos e quase dois metros de altura, tenta alcançar seus passos para caminhar a seu lado em direção ao refeitório da prisão. Com sua discrição costumeira a um traficante de drogas, pergunta:

—  Mas que raios de motivo você tem para perder una vez más a hora da escala de limpeza? É a terceira vez essa semana e eu te garanto que no aguantarás ficar sem comer por três dias de novo, meu jovem.

—  Estava escrevendo para a minha família. Não escrevo mais como antigamente e levou tempo para terminar. Queria entregar a carta pela manhã, para que chegasse lá em casa a tempo da noite de Natal. 

—  Chico, no te pongas en un lío porque você quer falar con tu mamá. Inclusive você deveria permitir que eles viessem te visitar nesse tempo das festas, eu mesmo…

Jeff interrompe:

—  Hermano, já se passaram dos años desde que tudo aconteceu e eu sigo não permitindo que minha mãe pise num lugar como este. Meu pai costumava vir aqui para ver se alguma dessas almas ainda se interessava pela salvação. Mamãe já está debilitada demais para que a gente pense que ela tem algo a ver com isso. 

—  Não está aqui quem falou. Chegamos ao refeitório e eu deixei um esfregão aqui para você ser visto trabalhando ao menos por mais 40 minutos. De nada. 

Jeff toma o instrumento em suas mãos frias, e percebe que o piso já está cheio de produtos de limpeza. Se perguntava a razão por que um arquiteto projetaria um refeitório com piso e paredes bem brancos.
A coluna apresentava sinais de dor, mas faltava pouco para que sua parte nos grandes ladrilhos de 50 por 50 centímetros estivesse limpa. Estava acostumado a limpar limo de ladrilhos de porcelanato branco. O frio daquela manhã não ajudava a aliviar a tortura que era ter os dedos das mãos e dos pés molhados. O grupo de detentos que estava em seu turno já estava concluindo seu serviço e Pancamo fez um sinal que estavam indo à área externa para descansar e esperar que o almoço fosse servido. Jeff assentiu e voltou a concentrar-se nos seus quadrados de piso, limpando-os um a um. 

A voz estridente de Cruz invade o ambiente, quebrando a monotonia branca daquela atividade. O agente entra no refeitório segurando uma caneca.
—  Você já terminou sua parte do piso, Rodrigo?

—  Estou quase. Ficará pronto a tempo do almoço.

—  Realmente parece que o mocinho fez um ótimo trabalho, como sempre. Mas acredito que precisa passar mais tempo aqui para compensar os minutos atrasados sonhando que o Príncipe Encantado virá em um cavalo branco para tirá-lo de St. Leonard!

Cruz vira a caneca em direção ao piso. O líquido dentro dela era café – já frio – que se espalha pelo chão limpo em um alto contraste de marrom escuro sobre aquela grande tela branca. Jeff já estava acostumado com aquela cena e apenas abaixa os olhos, frustrado, voltando a pegar o esfregão. O agente segue com mais instruções:

— Lembre-se que o almoço começa a ser servido às 11 horas. Mudamos a runsheet para uma hora mais cedo desde que o senhor Koukaishi ingressou no sistema em meados do mês passado. Senhores como ele precisam comer mais cedo, entendido?

Jeff apenas assente com a cabeça e volta a limpar o chão, entendendo o motivo pelo que aquele refeitório foi projetado totalmente em branco: aumentar o trabalho de quem seria responsável para limpá-lo e realizar esse tipo de punição aos mais indisciplinados, como ele. Assim, poderiam focar em sua trabalhosa limpeza e não pensar em violência ou desordem lá dentro. 

***

A área externa da prisão não oferecia muito entretenimento. Algumas quadras poliesportivas com pintura desgastada, grandes corredores de terra batida, que outrora eram gramados, e arquibancadas que também tinham uso múltiplo. Serviam para os banhos de sol e para as reuniões gerais dos detentos. O grupo de limpeza do refeitório estava sentado em uma delas, mesmo com o frio que fazia naquela manhã, seus corpos estavam aquecidos pelo serviço de limpar o grande salão de refeições entre o café e o almoço. Jeff consegue se unir a eles, mas se senta, em silêncio, no degrau mais alto, enquanto os demais observam seu movimento de subida. 

Tammers, um homem moreno e esquio, com a orelha perfurada por vários brincos e com um diastema central em seu sorriso sarcástico, observava o movimento de Jeff subindo as escadas e desvia a atenção de uma conversa comum para o que estava acontecendo:

— Jeff, a inspetora Farias me lembrou que seu processo faz aniversário. Eu até te daria as felicitações por mais um ano de St. Leonard hoje, mas…

— Não seja tan estúpido – retrucou Pancamo – a verdade sobre esse caso é algo conhecido de todos. Mas parece que há um acordo comum para que o garoto cumpra a pena em nome de alguém que deveria estar sentado con nosotros aqui em cima. 

—  Eu penso que até o próprio menino está cansado de ser visto como a vítima da história. Já são quase três anos de prisão, ele está convencido de que é mesmo um criminoso. Ele já se porta como um de nós, não acha?

Zanatta era outro dos integrantes do grupo de detentos sentados na arquibancada naquela manhã. Ítalo-americano, tinha um grande topete castanho e alguns trejeitos para que fosse confundido propositalmente com um mafioso. O que de fato, não era. Se tratava apenas de um assaltante de banco. Prestando atenção em um Jeff inerte, inseriu-se no diálogo:

— Mas pensem comigo: o que saiu na mídia é que este menino nunca quis dar sua própria versão da história e se manteve em silêncio durante o julgamento. Eu não faria isso se fosse inocente, e sabemos que ele não é tão inteligente assim se estiver comprometido a entregar alguém que ama. Temos aí as teorias do envolvimento dele com o tal do…

—  Você não vai pronunciar o nome desse canalha aqui – retrucou Tammers. Eu sei que Jeff não é um anjo, mas o que esse cara fez foi absurdo. Mais absurdo ainda é a vibe de bom moço do interior que ele insiste em passar, e todo mundo acredita. Eu sou homem pra assumir minhas contas, saca?

Pancamo respondeu:
—  Todos aqui somos, por isso estamos aqui e não onde a gente realmente gostaria de estar, agora. 

—  Ou nos lugares onde aquele cara vai com um violão esquisito – Tammers segura uma risada –  Tem noção que o cara é visto com um violão que tem identidade própria e conta de rede social? É muito bizarro. Hey Jeff, como você se meteu com um maluco desses?

Jeff apenas abaixou a cabeça, talvez demonstrando estar envergonhado. Pancamo prosseguiu seu argumento, depois da história que Tammers contou. Um fato desconexo como uma anedota num Late Night Show, mas que parecia fazer sentido aos que acompanhavam a conversa. Pancamo retoma a palavra:

— Uma coisa o maluco do Zanatta disse com razão: o maior problema do caso do Jeff é que ele nunca pôde dar a sua versão da história. Ninguém sabe o que ele estava fazendo no museu naquela noite, se realmente ele estava acobertando os ladrões que levaram os pedaços da obra de arte, ou ainda, que relação o crescimento da fortuna del hijo de puta tem a ver com o roubo da peça. 

Dirigindo-se a Jeff, prosseguiu:
— Eu só queria que os juízes tivessem a chance de te ouvir. 

Mal acabava de fazer contato visual com Pancamo, Jeff percebe que Cruz está se aproximando da arquibancada com o seu costumeiro andar apressado. Sua voz estridente soaria dando alguma ordem para o grupo em alguns segundos. Mas, todos ficariam surpreendidos com o fato de que aquele agente penitenciário não tinha nada operacional a comunicar, mas algo que ninguém estava esperando naquela manhã fria:

— Senhor Jefferson Rodrigo, você tem uma visita extraordinária. Siga-me.