(Ou, o prólogo do quinto capítulo)
Às vezes eu insisto em negar isso, mas já tive 18 anos. E, na minha época, ter 18 anos era ser apenas um pós adolescente com obrigações civis. Eu me assusto em fazer entrevistas com candidatos às vagas de design no escritório onde trabalho, e ver a desenvoltura de figuras que tinham 18 anos ali em 2018, ano do qual me lembro com detalhes e muito carinho. Hoje, aos 20, esse pessoal consegue conversar sobre projetos pessoais e profissionais com uma firmeza que eu não tinha naquela idade.
Eu posso dizer que cresci na igreja. E hoje tenho orgulho em não afirmar que nasci em uma. Eu nasci na rua, na areia da praia, da espuma do mar, tomando o vento que atravessava as folhas do pé de fruta-pão da casa dos meus avós. A igreja católica era um lugar mágico e a experiência de culto ali me mareja os olhos até hoje: os cinco sentidos envolvido numa solenidade pomposa com metais, altares e roupas. Ao mesmo tempo, quando chegava em casa nos domingos pela manhã, eu ouvia minha mãe dizer como aquilo não fazia sentido para ela. Meu pai é neto de pastores e foi gentilmente escolhido pela misteriosa figura de meu bisavô para ser seu sucessor na pregação do Evangelho. A profecia se cumpre apenas 50 anos depois, e meu pai vai de um viciado em drogas a um homem em recuperação, numa igreja pentecostal na periferia.
Você pode subestimar esse tipo de movimento hoje, mas foi nesse contexto que recebi o papai de volta, e ele decidiu começar a ser o meu pai. Era tarde e nós dois sabíamos disso, mas demos o nosso melhor na tarefa de crescer como pai e filho. Foi com ele que aprendi a ser grato a Deus como meu próprio pai. Esse é o cordão que foi amarrado à minha cintura quando fiz doze anos. É como se meu pai e meu pai celeste soubessem que eu entraria num labirinto depois disso, e aquela corda me ajudaria a não perder a porta de vista.
Se você me conhece há alguns anos, não esperava que eu fosse comparar minha trajetória na igreja ao labirinto na ilha de creta. Para quem, por sua vez, me conhece intimamente há alguns anos, sabe que isso faz muito sentido.
O que consigo desenvolver profissionalmente hoje foi moldado e ativado no ambiente da igreja. No começo dos anos 2000, um culto demandava uma certa quantidade de design empregado, e isso era levemente opcional. Atualmente, uma igreja protestante não funciona sem um grupo dedicado ao seu design gráfico. Há muitos suportes possíveis, alguns deles imprescindíveis: telas, pequenos impressos, letras de música, redes sociais. Sou especialista em todas elas, e me formei na famosa escola da vida, que vira seminário de capacitação ministerial domingo a domingo, em muitos prédios, grandes e pequenos, em todo o Brasil.
Seguindo o exemplo do meu pai, meu foco era sempre trabalhar. Eu passei dez anos como voluntário numa igreja até me tornar funcionário de uma. Quando isso aconteceu, eu coordenava a comunicação da denominação no Brasil inteiro. E foram dez anos num labirinto controlado por um minotauro. A Bíblia narra a história de Tamar, uma princesa que foi violentada no ambiente mais seguro do país, a sede do governo, por um ser acima de qualquer suspeita: seu irmão, uma autoridade militar. O abuso acontece sempre num ambiente muito pouco provável.
Na minha época, todo menino negro crescia com um controle severo dos pais sobre o próprio cabelo. Só com a cabeça praticamente raspada, você poderia ser uma pessoa de bem. Isso me deixava curioso para saber como seria o meu cabelo se ele fosse grande. Quando criança, colocava toalhas sobre a cabeça para simular penteados e movimentos.
Raspar a cabeça se tornou normal. Eu me lembro bem da cena de estar na igreja, sentado nas cadeiras da frente com vários rapazes da minha idade, vários deles vindos da região sudeste. Naquela época, as palestras demoravam horas, literalmente. O pastor falava algo a respeito de como a juventude ali presente era talentosa, e passava a mão “assanhando” os penteados de todos. Ao aproximar a mão sobre a minha cabeça, ele tem o reflexo de recolhê-la, como quem se afasta para se preservar de uma panela quente.
Eu estava sempre trabalhando, emendando uma entrega à outra, uma dor no braço à outra, e no fim dessas jornadas gigantescas, teria de brinde… Mais trabalho. Enquanto isso, meus amigos brancos eram conduzidos por meus pastores para o restaurante de comida japonesa perto da praia. Naquele momento, éramos todos inocentes. Eles, e eu. Ao passo que eu era admirado pela capacidade de trabalhar por dias sem parar e pela qualidade do que eu entregava sem experiência no mercado, eu via a situação como uma oportunidade de me desenvolver.
Daquele momento em diante, todas as situações onde eu estava me soavam muito perigosas. Eu era alertado o tempo todo sobre não opinar, não demonstrar sentimentos, sorrir sempre, voltar de cada viagem para um evento com um relatório positivo (ainda que falso na maioria esmagadora das vezes), não dar feedback a ninguém sobre como me sentia, nunca deixar o cabelo crescer, não usar bermudas acima do joelho, não consumir grandes quantidades de açúcar em público, entre outras regras sem sentido. Apesar de não ter um perfil desobediente ou rebelde (ainda que muitos façam essa alegação), por motivos misteriosos àquela altura, o meu comportamento parecia ser sempre um motivo de reprovação. Por mais que eu quisesse espernear, tenho certeza que, como ser humano, eu nunca fui levado a sério até então.
Por mais que a minha crescente qualidade no design fosse louvada, cada passo que dei em direção aos ambientes de liderança e elaboração de projetos acontecia enquanto eu lia uma grande faixa em cima de tudo, em letras enormes:
(Continua na Parte 1 do Capítulo 5)