E eu estou condenado se o fizer
E condenado, se não
Então vamos aos brindes no escuro
No final da minha corda
Estou pronto para sofrer
Estou pronto para ter esperança
É um tiro no escuro
Na direção da minha garganta
Pois procurando pelo Céu
Achei o demônio em mim
(Florence Welch/Paul Epworth)
O monstro no labirinto
Em 2020, enquanto escrevo, um intelectual soa bem quando critica o funcionamento de uma igreja. Eu digo que 90% dos comentaristas sobre o assunto não sabem “da missa um terço”, com o perdão de usar o jargão que pode soar jocoso em um assunto tão denso. Dentro da história, eu só conseguia ver os meus dias como momentos de muito trabalho, restrição alimentar e a busca por uma aceitação pessoal que não viria de onde eu estava esperando.
Na verdade, não poderia vir.
Você pode pensar que eu me submeti à estrutura por minha própria vontade. Eu respondo que há recortes que você nunca entenderá. Pelo menos não de um jeito tão simples. Quando alguém nasce onde eu nasci, seu maior sonho é terminar a vida diferente do seu avô e dar orgulho aos seus pais. Eu faria qualquer coisa por isso. Eu sigo pagando caro por esse objetivo, enquanto escrevo. Eu não sei o que é lutar “pra ser feliz”, ou para realizar “meus sonhos”. Muita gente me pergunta se este projeto é o meu maior sonho. Em dias bons, tenho a sinceridade de responder com um sonoro “não”. E um sorriso. É difícil demais explicar com palavras o que é não viver para si mesmo, e acabo de desistir de tentar.
Gente como eu precisa trabalhar duas vezes para provar que é bom o suficiente para trabalhar amanhã. Não é culpa das pessoas. É uma comunicação que está clara para todos os que têm a mesma origem que eu. Isso não nos faz um clube especial, mas uma comunidade que foi tirada à força de seu continente de origem para ser escravizada aqui. Não temos os dados de nossos ancestrais e nossos tataravós provavelmente morreram em revoltas contra o império.
Conheci o Tiago de Oliveira nesse contexto. Numa das minhas visitas a São Paulo, a trabalho, nas conferências que a igreja promovia para centenas de jovens. Tiago já tinha o cabelo trançado com fios coloridos de lã. Isso me soava ultrajante, mas a coragem dele me chamou a atenção. Fomos apresentados através de um casal de amigos, e sem conhecê-lo pessoalmente, o convidei para ser parte da equipe de voluntários que cuidaria da comunicação para as próximas conferências. Até hoje não sei como fui capaz de fazer isso sem saber as aptidões técnicas daquela pessoa. Essa foi uma das mil decisões que tomei sem pensar nessa época. Se pensasse, não sairia do lugar. E não me arrependi dez anos depois.
Eu digo que o Ti não é preto. Ele é azul. Uma das pessoas mais pretas que já vi na vida, mesmo quando ele passa eras sem tomar sol. Desde a nossa primeira conversa eu sabia que não estava diante de uma pessoa comum. Eu acredito que, com a salvaguarda da individualidade das nossas histórias, mesmo tão jovens e inexperientes, compreendíamos os riscos que o outro arriscava por simplesmente existir ali. Lideranças contagiantes, trabalhadores excelentes, apaixonados pela causa, com uma boa criação e comportamento, mas éramos perseguidos pelo monstro no labirinto, o tempo todo.
Em anos de amizade, eventos e projetos feitos com baixíssimo orçamento (o que exigia de nós um talento absurdo para a sua execução), nos encontramos profissionalmente e entendemos o que faríamos para pagar as contas. Nada sobre as situações que eu vivia antes melhorava, e eu era submetido a humilhações maiores. Havia uma resistência declarada para que minha voz não fosse ouvida, apenas meu trabalho deveria ser realizado, e aumentar de nível.
Eu lembro com carinho o dia em que fizemos nosso último grande evento juntos naquela igreja. Era uma noite amena de 2014 em Brasília, quando o próprio Tiago, liderando o cerimonial do evento completo, pediu que um microfone fosse ligado para que eu pudesse falar. Eu não sei como, mas minha voz saiu. Eu pude agradecer a todos os que tinham permitido que eu chegasse até ali e apresentar, eu mesmo, o meu próprio trabalho.
Só dois anos depois eu viveria as experiências que me colocaram de volta no lugar, depois de anos de desconstrução da minha imagem e da minha identidade. Abuso espiritual é algo do que não se fala muito hoje, e tem consequências eternas. Mas, a compreensão desse grande contexto conduzia a mim e ao Tiago para realidades muito distantes da nossa bolha evangélica.
O monstro que controlava o labirinto de perigos em que estávamos metidos não era uma liderança cristã famosa, ou um político proeminente nos anos 2010. O ser de quem eu deveria correr por minha própria vida, e ao mesmo tempo resistir para sair dali, é um inimigo que gente como o Tiago e eu enfrenta todos os dias, nas mais diferentes esferas da sociedade brasileira. Nem todos conhecem o seu rosto, mas todo um povo dorme e acorda com essa presença espiritual ao pé da cama, preparado para mais uma batalha.
Ele tem um nome. Se chama racismo estrutural.