Terminar do zero
Tudo o que eu conseguia ver era uma linha. E, pela primeira vez, os possíveis questionamentos do Pedro em volta daquela solução, que surgia aos poucos na minha retina, pareciam não me fazer querer desistir dela. Uma linha simples escrevendo uma palavra pequena: hub. Uma linha só, um lado só, liso como um círculo. Enquanto eu ouvia aquele grupo de amigos na reunião, grupo que agora se tornava a liderança de uma igreja, a minha mente oficialmente não estava lá. Eu considero que se tratava de uma situação atípica. Por favor, não me julgue como alguém que fica absorto em pensamentos durante uma reunião de briefing. Tudo o que eu conseguia ver era aquela linha que se tornava um círculo. Uma linha.
O caminho de volta até São Paulo foi colorido por um lindo crepúsculo. Eu estava emocionado com a ideia de executar um projeto de branding tão completo. Ao mesmo tempo, me vinha o convencimento de que aquele seria meu último trabalho envolvendo uma igreja local. E, principalmente, aquela narrativa que já durava quase catorze anos. Até quando continuar à sombra do sonho de outra pessoa? Era algo que eu não queria permitir para mim. As consequências daquele passo poderiam causar as mais diversas reações. O medo era duplo: não entregar bem o suficiente (e enfrentar uma longa sabatina de alterações, já estando fisicamente cansdado) e o que aconteceria a partir do momento que tornasse pública a minha decisão de não fazer mais parte de uma igreja. Então, foi sobre pensar em duas coisas óbvias: chorar e procurar ajuda.
E aí eu vi que tinha chegado a hora de procurar o Fred Oliva.
Se você está lendo desde o comecinho, Fred Oliva é alguém que apareceu no primeiro capítulo. Ele é um dos profissionais que eu mais admiro. Do outro lado da moeda, eu nunca havia vivido a experiência de “não saber” naquela intensidade. Quando estou nesse tipo de situação, a minha cara-de-pau se faz sobre o meu rosto quase que automaticamente. Minha sorte? Frederico poderia se comportar como uma celebridade do design, mas não é desse tipo de pessoa. Ele me recebeu por horas numa videochamada pandêmica cheia de questionamentos.
— Uma igreja, cara? Que diferente!
Me surpreendi com o fato de que ele não fazia a menor ideia de que seu estado, Minas Gerais, tinha sido uma espécie de “Meca Evangélica” nos inícios dos anos 2000. No fim, isso parecia ótimo: ele não sabia nada sobre o “mercado de almas”, e poderia dar opiniões de foco técnico, uma vez que estava distanciado de questões políticas internas e jamais entenderia meus próprios questionamentos daquele momento. Desdobramos uma série de soluções juntos e exploramos muitos caminhos do processo criativo. No fim, eu estava certo na minha intuição e tinha certeza que eu queria fazer algo que fizesse referência ao trabalho dele.
Fred e eu somos fãs do modernismo e das padronagens que os artistas plásticos da década de 50 alcançaram, aqui mesmo no Brasil. Athos Bulcão é um nome que explica bem essa referência a quem precisa fazer uma pesquisa no Google para entendê-la. Eu precisava de uma forma que se abrisse em padrão, como o que acontece nas calçadas do Rio de Janeiro, por exemplo. O ponto de partida era claramente o desenho que considero mais pregnante de todos: o círculo.
Manipulando o círculo, me lembrei do simbolismo dele. Círculos são a forma das alianças e das mesas redondas. Sem começo e sem final. Quando pensamos no centro de algo, no cerne dos caules das árvores, quase nunca pensaremos num retângulo, mas num ponto circular. Foi José de Arimateia quem uniu o círculo à cruz, no tempo do evangelismo dos povos celtas, gerando a famosa cruz celta: uma cruz envolta pelo símbolo da eternidade.
Ao quebrar os vértices do círculo, tal qual ocorre na cruz celta, descobri microformas que revelavam uma verdade: um círculo, forma aparentemente muito homogênea, pode ser formado de várias microformas que não são necessariamente circulares. Foi assim que formei uma malha de formas diferentes, organizadas em linhas horizontais. Me soou romântico, leve, conectado e ao mesmo tempo muito fluido.
As cores chegaram quase que automaticamente. Lendo os marcos de visão e missão da Igreja Hub, as pessoas eram marcadas como uma prioridade. Há muito tempo eu namorava com o conceito de usar tons de pele humana para comunicar sobre “pessoas” e “diversidade”. Os tons de marrom, sépia e marsala também são usados por restaurantes e cafeterias para comunicar um lugar onde você pode se sentir aconchegado e permanecer por mais tempo. Parecia perfeito, e a aplicação caiu como um café quentinho. Ou um capuccino. Ou chocolate quente. Coisas que abraçam, como a comunidade de fé se propõe a fazer, por mais que eu não acreditasse mais nisso naquele momento.
E, aparentemente, todo o conceito foi aprovado. De cara. Com ressalvas, claro. Existia um medo forte em encontrar algo parecido, e de fato algumas coisas foram surgindo com similaridades, longe do Brasil e longe do nicho de igrejas. Aos poucos, a liderança da Hub foi entendendo o quanto a marca deles era realmente peculiar, e criada sem que eu olhasse para o lado. A aprovação veio, e com ela, a primeira aplicação do branding em vários itens que a igreja já tinha necessidade de aplicar.
Durante o processo de abertura, cuidamos da identidade visual de modo especial, principalmente para as mídias sociais. Ao contrário do que esperávamos, a pandemia de coronavírus não retrocedeu no Brasil, e a linguagem para reuniões presenciais ficou para um outro momento, sendo substituída pelo conhecido paliativo de conexões on-line. É claro que ninguém fica feliz inaugurando uma igreja pela Internet, mas não havia outra opção para a Hub. Alinhamos a linguagem visual nos filtros de fotos até o modo como as informações visuais foram acomodadas no site. Faltava pouco para a páscoa de 2021 quando senti que tinha terminado.
Por um motivo óbvio, comuniquei a eles primeiro a respeito de minhas decisões pessoais, para evitar que eles alimentassem algum tipo de expectativa em torno da minha presença nos projetos para o resto do ano. Terminei aquela videoconferência bem, com uma sensação de ter tirado um peso muito grande das costas. Os arquivos estavam entregues. O ciclo estava oficialmente terminado. 20 anos da minha vida passaram diante de mim, como um pomposo desfile. E se você quer um relato sincero, eu ainda não sei se o sentimento é de desperdício total dos meus dias e da energia da minha juventude em um espaço que nunca me reconheceu como ser humano; ou de um grande aprendizado pessoal e técnico em duas décadas. Há espaço para os dois sentimentos dentro de mim. Entretanto, se você é bom em matemática (como eu não me proponho a ser), sabe que subtrair tudo de tudo te leva a apenas um lugar: a estaca zero.
Não seria este o lugar do princípio de tudo?
O raciocínio completo sobre “terminar do zero” já está disponível no meu Behance.