Limão-siciliano*
Tenho certeza que até o fim do capítulo, vocês vão me perdoar. Antes de começar, quero lembrar que meu nome é Jefferson. E o de vocês? Digam baixinho aí que o meu coração vai escutar.
É claro que tínhamos uma referência. Era um vídeo antigo, que eu já tinha assistido bastante no tempo em que covers de músicas da #Hot100 eram o grande tipo de conteúdo que agitava o YouTube. A referência me lembrava um tempo bom da minha vida. Sempre que recebo um convite inesperado da Mari, é algo que vai dar muito trabalho, mas que terá um resultado final compensador. Respirei fundo e perdi as contas de quantos cartazes precisaria fazer até o final daquela noite.
Eram por volta das 19:15 e eu estava na sala de estar da Nice House, cheia de jovens usando moletons naquele dia relativamente quente, e comendo pizzas. Várias delas. Como eu estava muito acanhado por estar ali, tentei passar despercebido ao máximo, o que foi impedido pela recepção cordial que todos me deram. Fui apresentado ao diretor criativo da casa, que é uma das pessoas mais inventivas que já encontrei. Revisamos o storyboard e entendi o que deveria fazer.
Toda a letra da música seria escrita para aparecer no vídeo, e apenas uma inserção de animação estava programada, além de uma outra usando a tela de uma TV. No mais, tudo artesanal: balões, camisetas, cartazes, post-its… Toda a música seria exibida usando itens da realidade. Não era uma tarefa complexa, mas era uma briga contra o relógio.
Acompanhados pela Mari, andamos por toda a casa revisando as partes que receberiam cartazes ou inserções tipográficas. Elas não seriam feitas totalmente por mim, uma vez que algumas delas precisavam ser realizadas em locais onde já havia pessoas dormindo. Reunimos o máximo de informação que podíamos, tivemos novas ideias e desci para uma mesa de trabalho perto da sala de reuniões.
Eu comecei a suar. Sempre é assim na hora de desenhar ou escrever com muita gente olhando. O ritual é o mesmo e eu já o conheço: não tenho cara de artista e, ao me olhar, quase ninguém imagina que sei fazer o que sou capaz de fazer, até que alguém veja o que está saindo da minha mão. Não consegui ficar mais apagado ali, e chegavam as pessoas querendo ver o que eu estava fazendo. A situação era desesperadora, mas os nicers só estavam tentando ser receptivos. E como eles foram! Eu realmente decidi não comer nada, mas não podia negar que eles me mantivessem hidratado. E o fizeram, em vários copos grandes de água com rodelas amarelas de limão-siciliano. Eu amo esse sabor, mas a partir dessa experiência, ele me lembra a letra da canção que ouvi trocentas vezes para não errar os desenhos: tamo nice/tamo nessa/tamo junto/tô com pressa/não vou ficar parado…
Nosso primeiro foco referencial era a organicidade. Lettering é o tipo de coisa que lembra pessoas muito pedantes que já passaram pela minha vida. Eu tenho um profundo desejo de não ser colocado em uma lista de possibilidades junto a elas. Quase todo mundo que eu conheço, que trabalha com isso, tem um perfil crítico, grosso e soberbo. E a essa altura do campeonato você já deve saber que meu trabalho é um resultado do que meus sentimentos evocam. Imagine agora o que o lettering me lembra…
Vocês ficaram tristes com a história? Vou fazer um pedido para vocês: todas as vezes que vocês se sentirem solitários, isto é, sozinhos, procurem uma pessoa para conversar. Escolham uma pessoa grande que seja muito boa no que faz e que entenda que às vezes um criativo está sofrendo. Às vezes de pura saudade da autenticidade. Eu conheço poucos calígrafos, daqueles que trabalham em casamentos, que sejam autênticos.
Esse tipo de gente costuma fazer letras que lembram arte digital, porque a referência mais abraçada pelo mercado parte dos sites de venda de desenhos vetoriais prontos, e não da técnica original de letras para cartazes. Foi um alívio saber que não era a proposta da Nice House. Eles queriam uma letra que parecesse real, com um toque de imperfeição. Isso fez minha coluna relaxar e conseguir apenas soltar a mão sobre o papel.
Nosso segundo foco era a similaridade com a realidade. O material usado não podia soar tão complexo. Era como se os nicers tivessem feito aquilo em casa, e não fossem elementos tão estranhos ao ambiente da própria “House”. Isso conectaria os produtores de conteúdo com seus consumidores. Nossa forma de dizer “crianças, podem fazer isso em casa” foi usando coisas simples: papel sulfite, barbante, cartolinas, canetinhas e pincéis fluorescentes. Trabalhamos em frases até às quatro da manhã, quando revisamos tudo o que tínhamos feito e delimitamos o que eu deveria deixar pronto e o que seria complementado por eles mesmos no dia seguinte.
Cada fator somado à naturalidade daquelas figuras diante das câmeras, causou um resultado impactante.
Bem, agora chegou a hora de falar sobre o meu crime: eu não gosto de fazer lettering, mas as pessoas insistem em me convidar para fazer. Juro que não foi de propósito. Juro que não foi culpa minha. Se fosse, eu dizia.
Até hoje eu não sei se eles tinham outro artista em mente para aquele trabalho e eu fui parar lá para “tapar um buraco”. E não me sentiria menos feliz se descobrisse isso. Cada uma daquelas jovens pessoas (e a incansável equipe bem adulta por trás de tudo) são mais interessantes do que os adolescentes que foram meus colegas de escola. O segredo do sucesso deles não é apenas talento, mas o coração de acolhimento, tolerância e respeito que eles carregam. Também devo mencionar o duro trabalho que exige produção quase que o tempo todo. Há muito amor, mas há muito foco. Esse é um dos maiores tesouros da geração que vem depois de mim.
E assim como a mãe ou a empregada esquecem uma panela no fogo, e quando vão ver já se queimou toda a comida – eu estava também ocupado escrevendo história, estudando photoshop, caprichando em desenho vetorial. E simplesmente fiz uma coisa parecida com deixar a comida queimar no fogo: não me senti pronto para ganhar dinheiro desenhando letras! Logo eu que sempre fiz isso a vida toda, coitado.
Minha caligrafia deve ter passado fome, igual gente. Mas nós falamos e reclamamos, o cachorro late, o gato mia, todos os animais falam por sons. Mas a letra é tão muda como uma árvore e não tinha voz para reclamar e me chamar, por mais que a gente possa ler. E, quando fui ver, minha habilidade parecia estar morta de fome. Talvez não ela em si, mas a minha vontade de me aperfeiçoar e considerar o lettering como uma das atividades que faço profissionalmente.
Vocês ficaram muito zangados comigo porque eu fiz isso? Então me dêem perdão. Eu também fiquei muito zangado com a minha distração. Mas era tarde demais para eu lamentar.
Eu peço muito que vocês me desculpem. Dagora em diante nunca mais ficarei distraído.
Vocês me perdoam?