O menino que não gostava de fazer lettering*
Esse menino que não gostava de fazer lettering infelizmente, sou eu. Mas juro a vocês que é sem querer. Logo eu! Que amo desenhar e não tenho coragem de desdenhar da forma de nenhuma letrinha! Até faço letras desenhadas aqui e ali no meu caderno, e nas louças aqui de casa, quando recebo convidados.
Dou minha palavra de honra que sou pessoa de confiança e meu coração é doce: perto de mim sempre há uma caneta pronta para desenhar letras.
Pois logo eu descobri que não gostava de desenhar letras. Ou, pelo menos, desenvolvi uma certa repulsa em fazer isso. As pobres letrinhas cursivas não fazem mal a ninguém, nem são ambiciosas: só querem mesmo ficar bonitas em alguma superfície de giz ou decorações previsíveis de casamento.
As pessoas também querem ficar bonitas, mas infelizmente também aproveitar a vida para fazer alguma coisa de bom.
Eu não tenho coragem ainda de contar agora mesmo como aconteceu. Mas prometo que no fim do capítulo contarei e vocês, que vão ler essa história triste, me perdoarão ou não.
Vocês hão de me perguntar: porque só no fim do capítulo?
E eu respondo:
– É porque nesta parte e na próxima, vou contar algumas histórias de como eu lido com a minha letra, só para vocês verem que eu só podia deixar de gostar de fazer lettering, assim, sem querer.
Estou com esperança que, no fim do capítulo, vocês já me conheçam melhor e me deem o perdão que eu peço a propósito de não achar que tenho uma letra bonita, e por isso não gostar de fazer lettering.
Quando passei dos 30 anos, passaram a chamar “caligrafia” de “lettering“.
Eu sempre gostei de escrever. Tive uma infância rodeada de lápis de cor e muito papel. Nasci numa casa cheia de adultos com pouca companhia para minhas brincadeiras. As crianças que passavam por lá, iam embora muito rápido. Na maior parte do tempo a minha companhia eram os meus lápis e canetinhas. Minha mãe me contou que cheguei na escola com menos de três anos de idade e já sabia escrever. Aprendi pela falta do que fazer. Vocês podem não acreditar, mas eu tenho lembranças dessa época.
A letra da minha mãe sempre foi muito majestosa. Com o perdão de todos os artistas tipográficos que conheço, e que devem estar me lendo agora, eu nunca vi uma letra tão bonita. Pedia sempre que ela escrevesse na capa dos meus cadernos, livros e trabalhos. Isso não durou muito tempo. À medida que eu crescia e gerava mais despesas, minha mãe precisava trabalhar mais e a paciência dela com minhas questões escolares foi diminuindo gradativamente. Precisava me virar, mas jamais perderia a classe. Comecei a imitar a letra dela.
Pausa: a última vez que fiz essa confissão para alguém pessoalmente, fui acusado de falsificar a assinatura da mamãe. Definitivamente meu interlocutor não me conhecia. Minha mãe me dava palmadas quando eu misturava letras maiúsculas e minúsculas. Eu sempre ia mostrando meu caderno de escola a ela, para que ela visse meu progresso com a caligrafia. E ela nunca parecia muito impressionada. Naquele tempo, nada parecia mexer muito com o coração da minha mãe. Nenhum elogio. A bronca era sempre a mesma: “você continua misturando letras maiúsculas e minúsculas nessa caligrafia”. Atualmente, a mistura de estilos é um must have no Pinterest. Quando coloco um tipo maiúsculo no meio de uma palavra, as pessoas pensam que estou tentando parecer cool. Mentira. Só aos trinta e quatro anos me sinto livre para fazer travessuras, com a salvaguarda de mais de dois mil quilômetros do chinelo da mamãe. O que te parece moderno, me soa transgressor.
E, como de costume, me virei. Minha letra evoluiu. Imitei tanto as linhas gerais da caligrafia da minha mãe ambidestra, treinada com exímia excelência num colégio de freiras, com o melhor que a educação dos anos 90 podia me oferecer. Passei a vida toda tendo a minha própria letra, sem receber muitos elogios sobre isso. Se aconteceram, não me lembro, até chegar à faculdade.
No meio de algum de meus sonhos acordado – aos 16 eu costumava sonhar acordado o dia inteiro – fui assustado ao ser sacolejado por Lis, uma das melhores alunas da turma, que faria o trabalho de conclusão de curso comigo anos depois:
” ─ Sua letra é muito bonita!”
Dei uma risada. Todos os meus amigos sorriam. Eles concordavam. Analisava suas expressões entre as carteiras: 15 anos depois não era bullying, era aprovação. Minha letra era bonita. O ponto é que nunca tive vergonha da minha caligrafia, mas isso nunca foi um ponto de atenção para mim. Eu sempre desenhei, o que era verdade, e nem me lembrava quem me ensinara a desenhar. Eu peguei um lápis e consegui fazê-lo obedecer à minha imaginação. Era assim, nunca teve técnica. É assim, até hoje.
Nossa sala de aula tinha uma lousa que eu sempre rabiscava antes ou depois das aulas. Quando eu pegava o giz, Ramiro sempre me perguntava:
” ─ Qual das fontes que tem na sua mão você vai usar hoje?”
Esse era o jeito do Ramiro elogiar alguém. Acredito que até hoje ele seja irônico assim. Se mais velho, deve estar mais ácido ainda. Naquele momento eu comecei a pensar que, de fato, eu tinha dominado uma habilidade em escrever de um jeito bonito, ou como eu entendia, desenhar letras. Acontece que, naquela época, a demanda por calígrafos era muito pequena.
Mas existia. Assim que terminei o curso de jornalismo, minha colega Erna precisava de alguém para endereçar envelopes de convite para uma festa importante na empresa onde trabalhava. Foi a primeira vez que alguém me pagou para escrever. Não me perguntem quanto foi, pois não lembro. Recordo que foi uma experiência desconfortável. Não que Erna ou algum dos seus colegas tenham me tratado mal, mas ao ver minha própria letra naqueles envelopes vermelhos, escrita com caneta prateada, fiquei constrangido. Eu não conseguia achar aquilo nada além de mediano, quase ruim, para ser sincero. Me senti desonesto por ter sido pago para fazer aquele trabalho.
Naquela altura, na igreja em que eu fazia parte, acontecia o famigerado Encontro com Deus, que vou me privar de explicar sobre o que se tratava para focar nas tarefas. As pessoas tinham tarefas que pareciam muito incríveis, ou pelo menos eram creditadas como tal. Limpavam acampamentos inteiros, cozinhavam comida para um batalhão, cuidavam de pessoas, lideravam pessoas, expulsavam demônios, cantavam, até dançavam… E eu? Bem, eu era responsável por escrever o nome dos participantes do lado de fora de envelopes que eles ganhavam com cartinhas de seus amigos e parentes. Nessa época, desenhar letras não era mais algo tão divertido.
Alguns dos últimos capítulos narram o que aconteceu daquela época até aqui, os tempos da pandemia de coronavírus. Num daqueles dias onde todo o meu trajeto foi do meu escritório para a sala, com pequenas passagens no quarto e na cozinha, estava finalizando um dia de trabalho quando recebi uma mensagem da minha amiga Mariele. Sim, ela mesma. Eu já deveria saber que teria uma missão impossível para que eu cumprisse algum tempo depois dela me dizer “oi”. Mas, se eu puder dar um conselho hoje, seria: tenha sempre uma amiga a quem atender quando ela estiver precisando de ajuda. O que acontece a seguir pode ser bem surpreendente.
─ Amigo, preciso que você faça um lettering pra mim aqui na Nice House agora”
─ Amiga, tem certeza? Não acha melhor chamar o [insira o nome de um calígrafo pedante aqui]?
─ Você é a única pessoa que eu chamaria sem avisar, e que tem uma letra bonita pra socorrer a gente.”
─ Beleza, quando?
─ Pelas minhas contas, a partir de agora e pela noite inteira.
Eram 7 da noite de uma terça. Nesse tempo eu precisava acordar muito cedo às quartas para estar numa reunião de trabalho. Respirei fundo, mas era uma oportunidade incrível de entrar na Nice House, a pioneira das casas de criadores de conteúdo no Brasil, na qual a Mari é uma das sócias.
─ Tranquilo, chama o Uber que estou indo agora. A Nice é perto daqui então não demoro.
E corri para o guarda-roupa tentando achar algumas peças que não me fizessem parecer tão mais velho do que os moradores da casa.
O lettering que eu fui fazer na Nice House naquela noite já está completo no meu Behance.