Lugar de fala

O tempo me ensinou que design não é sobre ter superpoderes de criação. É sobre experiência. Caminho andado. Sobre ter vivido muita coisa, e com isso, visto a abertura das janelas para o aprendizado. A minha vergonha sobre “não saber” reside exatamente na atitude consequente à constatação: isso mesmo, procurar a ajuda de quem sabe, de quem caminhou mais tempo que eu. A Priscila é a minha chefe à época que eu escrevo estas linhas. Sou grato em trabalhar com uma pessoa que me dá essa lição todos os dias: há coisas que só serão aprendidas ao se passar por elas. Mesmo de férias naquele dia, enviei uma mensagem de áudio perguntando sobre como faria um outdoor. 

Ela me conduziu com calma aos passos técnicos de como conduzir um arquivo fechado para impressão naquele formato específico, usando policromia. A princípio, fiquei desesperado sobre como armazenar um arquivo tão grande. Depois, descobri que precisaria fazer um arquivo muito menor que o esperado. Ou seja, era mais fácil do que eu imaginava. Os resultados positivos desse movimento são conhecidos: não sei de algo, peço ajuda, aprendo. E por conseguinte, cresço. Por ter crescido e vivido a experiência de aprendizado, consigo falar sobre o problema inicial para outras pessoas. Tomo posse do famigerado “lugar de fala”. 

A campanha era sobre isso: o lugar de onde alguém pode falar ao enfrentar uma situação de racismo. Ninguém não-preto pode falar sobre o que é racismo e o que não é. Em essência, as pessoas fotografadas estão expondo mais que seus rostos em outdoors. Elas estão expondo suas histórias de vida. Alguém imagina que estamos felizes em aparecer em uma grande publicidade ao lado de um diálogo desconfortável que já vivemos? Experiência é caminho andado, e o principal objetivo é compartilhar essa jornada com as novas gerações de pretos brasileiros, os quais esperamos que respondam mais prontamente do que nós fizemos, sendo inabaláveis diante do racismo, o qual já entendemos que não acabará. 

O Brasil é esse lugar de contrastes. As tensões raciais revelam contrastes que são apenas simbolizados visualmente pelas cores das peles envolvidas na questão. Atrás dos tons de claro e escuro, temos a desigualdade social e econômica, as disparidades profissionais e o preconceito religioso (para citar apenas alguns problemas) como pano de fundo. Com as fotos da Malu na mão, percebi que ela mesma evidenciou os contrastes, ao trabalhar as cores dos modelos em tons neutros. Tudo estava pensado para que os tons de suas peles fossem protagonistas na composição.


Inspirado no conceito de lugar de fala, dividi a imagem em três setores, explicando o contraste: o balão de fala, a cor do modelo e o plano de fundo. Toda a metade branca do outdoor se revela um grande balão branco, onde a pessoa preta ouve a afronta e responde à altura. No meio, aparece o modelo em sua expressão firme. A assinatura da campanha e seus apoiadores aparecem do outro lado, terminando a leitura completa da mensagem. Executei a primeira peça em alguns minutos e levei algumas horas ajustando o melhor caminho de diagramação.


Pessoas pretas são manchetes de jornal em todo o país quase todos os dias. A maioria das vezes, envolvidas em crimes, e frequentemente aparecem já assassinadas nos meios de comunicação. Eles inspiram a tipografia da campanha, que foi feita para se assemelhar a um jornal ou revista, copiando elementos clássicos de projetos gráficos para impressos mais tradicionais. Além do caminho simbólico, a escolha ajuda a manter o centro onde deve permanecer: na pessoa preta que nos conta a história naquela peça.

A assinatura final é grande e conclusiva. Ela tem o objetivo de chamar a atenção de volta para o começo da história, caso alguém não tenha lido tudo. “Não parece mas é racismo” aparece escrito também em uma fonte editorial, de modo que permanecesse amigável em fundo preto ou branco.

Enviei o arquivo para a gráfica e me senti muito tenso. Ora, no fim das contas descobri que precisava fazer uma figura que, na prática, media apenas 10% de todo o espaço do outdoor e precisava confiar na resolução aplicada. No fim, deu certo e Malu me ligou agradecida e feliz pelo resultado. Até ver a primeira peça impressa, a dor de barriga da incerteza e do “não sei” me acompanhou o tempo todo. Um trabalho com histórias de verdade por trás dele se torna vivo. Meses depois, falando pessoalmente com Malu e Pia Ornelas, elas me relataram como cada sessão era um abrir do coração de cada um a respeito das situações de racismo que eles enfrentaram, num contexto ainda mais complicado que é o interior do estado de São Paulo, onde a escravidão tinha unhas mais longas, e mesmo abolida, machuca até hoje.

Quando aprendi a desenhar outdoors, tive a honra de estampar neles não algo para ser comprado, mas uma ideia a ser compartilhada. Em vez de um mero anúncio, coloquei histórias de pessoas reais, heróis e heroínas do cotidiano, para que a sua própria cidade pudesse vê-los de outra forma. Quem diria que meus problemas com dizer “não sei” poderiam me levar a um cenário tão inédito?