2017
Era mais uma tarde fria de inverno e eu usava minhas costumeiras três blusas para enfrentar a pior estação do ano. Meu corpo todo era sono e tudo o que eu queria era poder encostar a cabeça na janela do metrô e dormir um pouco. Tarde demais. Estava perto da estação Consolação e precisava enfrentar o túnel de novo, carinhosamente chamado de “A Marcha dos Pinguins” pela minha família. O motivo do apelido era óbvio: a multidão se esgueirando pelos túneis da ligação entre as Linhas Verde e Amarela do metrô de São Paulo, num ritmo muito peculiar, lembrava o movimento migratório de bandos de pinguins pelo hemisfério sul.
Com o nariz escorrendo e a garganta reclamando, e tudo isso enrolado em um lenço vermelho, São Paulo me parecia uma imensa aventura sobre blocos de gelo. Por dentro, e por fora. Vida social congelante. Vida profissional escorregadia. Eu era um estagiário (que, como todo estagiário brasileiro, trabalhava por um efetivo), buscando um diploma de design, e por isso estava no metrô, indo para a escola. Minha primeira formatura já tinha quase dez anos de ocorrida àquela altura, mas cheguei num momento onde não tinha mais o que oferecer. Me lembrei do que faria a minha mãe: começar tudo de novo.
Era raro chegar pontualmente para o começo das aulas e as paredes de vidro da Panamericana denunciavam qualquer movimento lá dentro. Tudo era tão transparente que você só tinha duas opções: carão ou sorriso. Tudo ao mesmo tempo. Hoje, concluo que é assim que as pessoas vivem na era do Instagram: num eterno prédio de vidro.
Dentro da sala, minhas amigas queridas me esperando chegar e o professor Padilha. Era o meu último ano de curso, e como acontece com todos os últimos anos, recebemos instruções sobre design mercadológico de alguém com muita experiência. O Padilha era uma dessas figuras. Eu acredito que escreveria um livro, ou capítulos especiais apenas sobre as conversas que já tivemos. Dentro desse “fio da meada” aqui, ele vai aparecer apenas como eu o via na época – um professor ranzinza – então, peço que releve minha visão reduzida sobre quem aquele homem era. Pessoas muito cinzentas, que evocam para si escuridão ou monstruosidade (como era o caso dele), quase sempre escondem corações luminosos e aquecidos. Tudo ao mesmo tempo.
O ritual era o mesmo. Cansado como estava, deixava minha mochila escorregar pela minha perna e meu guarda-chuva sempre fazia barulho ao cair no chão. Sonolento, ligava o botão do iMac para destravar a tela. Na área de trabalho, as pastas dos trabalhos realizados e a confusão de referências sobre o que viria. Padilha já estava falando há uns dez minutos, e por mais que ele duvide ao ler isso, eu buscava me conectar com isso, no meio de um turbilhão de pensamentos… E sono, muito sono.
É lindo falar sobre recomeços. Eles me inspiram, de modo pessoal. A questão é: quase ninguém fala sobre o que realmente acontece depois de recomeçar. Eu tinha dez anos de profissão, abandonado uma função de gerência de comunicação, inspirava pessoas pelo país inteiro e troquei tudo isso pelo lindo momento de recomeçar minha carreira. Eu não tinha mais pique para estudar e trabalhar. As pessoas que fazem isso recebem toda a minha admiração hoje por causa dessa época. Mas lá estava eu, na dobra do livro que ninguém lê depois do recomeço: percorrendo um caminho já vivido.
E convenhamos, não é nada divertido. E me abria um sorriso. Tudo ao mesmo tempo.
Eu tinha enfrentado bem os desafios propostos até ali… Mas o final do curso reservava meu bicho de sete cabeças: design editorial. Livros. Revistas. Grid. InDesign. Este setor do design gráfico é sobre amar ou odiar: quem ama, não vive sem. Quem odeia, está fazendo posts para social media até agora, enquanto você me lê. Era a hora de enfrentar a hidra. Tinha sobrevivido ao projeto de diagramação de revistas muito bem, e não sei se era um prenúncio do meu futuro, mas tive meu projeto elogiado pela busca do equilíbrio nas páginas duplas da revista fictícia que criei. Mas, o desafio dos desafios era criar um objeto gráfico.
Um livro, que fosse mais que um livro. Uma edição especial, para colecionadores. Algo de impressão muito cara. Na escola, sempre te deixam sonhar e escolher o papel que você quiser, com o projeto que você quiser. Isso nunca vai acontecer na vida real, então acredito que os anos de formação podem ser chamados de prêmio de consolação antecipado, e ao menos compensar as noites frias andando pela Rua da Consolação, com o nariz congelado, para chegar a mais uma aula.
O que eu não esperava sobre o tal livro, era que não poderíamos escolher o tema que quiséssemos. Padilha não era tão adepto da cultura pop contemporânea e deixava os temas pré-estabelecidos dentro do seu próprio repertório cultural, assim os alunos entravam em contato com figuras que a Indústria Cultural dos anos 90 divorciou das gerações Y e Z. Não me lembro quais eram os demais itens da lista, mas me lembro de não me identificar com nenhum deles. Me restava apenas um conhecido distante, o qual não conhecia de fato, porém tinha propriedade para criar um produto que seria sua biografia. O nome de um conterrâneo de região me saltou aos olhos:
Luiz Gonzaga.