Em pedaços

Eu tenho uma relação meio ambígua com os óbvios. Ao mesmo tempo que acredito que tudo o que é óbvio deve ser evitado (principalmente no que diz respeito ao processo de criação), também acredito que todo óbvio deve ser dito. E repetido, se necessário (principalmente se eu falo de relacionamentos e dinâmicas pessoais). Essa minha crença dúbia me direciona a algo maior: voltar ao óbvio é um processo que deve acontecer de tempos em tempos.

Enquanto penso agora mesmo sobre voltar a alguns óbvios, me lembro daqueles dias em 2017 quando o meu professor de design gráfico nos deixou uma tarefa: independente do briefing escolhido, todos deveriam trabalhar em xilogravura para compor as capas de seus livros. Claro que existia uma pressão tripla a meu respeito na construção do meu projeto: eu podia desenhar muito bem, meu projeto pedia uma capa com aspecto nordestino e… Eu mesmo sou nordestino. Tudo isso era um grande óbvio. Obviamente. 

Dessa vez, não executaríamos xilogravura com madeira de verdade, mas com uma placa espessa de borracha. A goiva estava pronta para marcar os traços que eu tinha desenvolvido. Pensei em dois desenhos e fiquei bem dividido entre eles, então decidi ir pelo caminho mais difícil, criando as duas ilustrações. A primeira era o conhecido chapéu de cangaceiro de Luiz Gonzaga. Ele sempre foi um mestre em desenhar o óbvio.

Gonzagão foi a pessoa que “pintou” para nós, através de sua música e suas apresentações, a imagem do Nordeste que nós conhecemos hoje. E ele não foi equivocado em nada, mas é fato que a cultura nordestina sistematizada é uma criação dele e passa pelos pedaços de seu coração. As roupas de vaqueiro e o chapéu característico são a sua releitura do visual de Virgulino Ferreira, a controversa lenda chamada Lampião, o rei do cangaço. Luiz também se coroou como “Rei do Baião”, e usou vestimenta reais ao justiceiro que admirava: um chapéu de couro e um manto de vaqueiro. As paletas de cor que nos remetem ao sertão nordestino são óbvias por representarem o bioma da Caatinga, o qual todos conhecemos. Mas, o Brasil viu primeiro essas cenas nos desenhos de palco de Luiz Gonzaga. As fitas coloridas, os vestidos de chita, as texturas e chinelões de couro… Tudo foi pintado por ele, primeiro em sua música, no tempo em que um Brasil estava tentando correr contra o tempo para aprender sobre si mesmo. 

O filho de Januário desenhou o Nordeste com suas próprias mãos. Isso me inspirou na segunda gravura, onde eu desenhei o Nordeste com minhas próprias mãos, fazendo uma moldura para uma cena sertaneja. A sensação de passar a haste pela placa de borracha me dava a sensação de marcar a minha alma tão quanto eu feria o quadro que se tornaria a estampa xilográfica. A dor de ter deixado a minha terra, e ao mesmo tempo a alegria de representar uma verdadeira nação cultural nordestina em São Paulo, era algo que Gonzagão podia entender muito bem.

Porque só um coração partido entende tudo. Um coração inteiro não é capaz de raciocinar e sentir alegria, dor, confusão, festa, orgulho e solidão – tudo isso ao mesmo tempo. Desde a dor de (ser obrigado a) deixar Nazarena em Exu, “debaixo de pisa” da mãe, partindo para o exército muito jovem para redesenhar sua vida, Luiz lidava com as rachaduras em seu coração sem entender muito os motivos pelas quais elas estavam acontecendo.

Toda a obra do mestre do forró significa e reúne os pedaços de um coração quebrado, se propondo a falar sobre aqueles diversos sentimentos em cada um dos caquinhos, em poucas palavras, repetindo conclusões sobre eles – de novo e de novo – até que se consiga uma distância considerável para entender a complexidade de todos os pedaços juntos. Queria poder desenhar para você o que estou vendo. Vários pedaços juntos, como o chão rachado do sertão. Esse era o sentimento de Luiz Gonzaga. É o meu sentimento exatamente agora, quando escrevo. Levei anos para entender isso.

As gravuras ficaram prontas e já não sabia o destino de cada uma. Qual seria a capa? Qual seria uma ilustração interna? Tremia na base enquanto passava o rolo de tinta sobre a figura. Tratei o pedaço de borracha como minha própria carne e fui cuidadoso com ele. Daria certo o efeito de relevo? Tomei um papel rústico e simples, que tinha sido desprezado pelos demais alunos no exercício e imprimi minhas gravuras ali. As falhas na tinta complementavam o tom “quebrado”que eu queria dar à imagem. Pensava em todos os caquinhos do meu coração enquanto meu professor explicava, com paciência, como digitalizar os desenhos. Em alguns minutos, elas já eram vetores na minha máquina. E eu tinha que tomar uma decisão.


Achei uma foto de Gonzagão sem o icônico chapéu e sobrepus o meu desenho, sem muita coragem. O resultado me assustou. A pequena coroa no chapéu bem na frente do Rei do Baião. Eu vi a capa. O meu mapa estilizado da região nordeste poderia ser uma moldura para as páginas internas. Tudo isso com camadas de flores e chita. Nenhuma imagem poderia estar melhor na contracapa que a própria Asa Branca. Minha escolha já não parecia tão difícil. Nada de muitas cores ou fontes carregadas: o Nordeste falaria por si.

Luiz Gonzaga juntava todos os seus cacos em sua música. Em cada canção, vemos o mesmo menino sertanejo, vivendo sua primeira desilusão amorosa, e suas várias outras dores, mesmo quando está tocando “Vira e Mexe”. Tudo estava ali dentro, guardado: Nazinha, o Nordeste, a mãe, Januário, o exército, Léia, o Rio de Janeiro, Roberto, Ary Barroso, Helena, e claro, Gonzaguinha. Cada quebra, dor, amor, alegria, realização e rejeição fazia sentido dentro de suas canções. Tomei a decisão de fazer um “livro em pedaços” e procurar um lugar para guardar todos eles: dentro de uma sanfona.

Continua…