Fragmentos

Tudo o que agora está em pedaços, em algum momento foi inteiro. A lógica é sempre assim, e sempre fará sentido. A ideia do livro em quatro partes não veio sem antes realizar a minha tentativa de fazê-lo inteiro, em diversas possibilidades. Nenhum desenho parecia me deixar muito satisfeito. Eu já sabia que o formato original do objeto gráfico era uma sanfona, mas a representação disso me custaria tempo de raciocínio: o que conhecemos como “porta sanfonada” não é bem uma sanfona em si, já que o fole é como um “tubo” de paredes sanfonadas, e não uma “linha reta” que se dobra. Complexo? Eu sei.



Durante o tempo de elaboração do projeto, fui encorajado pelo professor a fazer testes com papéis diferentes. Uma conhecida marca de papel especial deixou um mostruário na escola, com diversos tipos de material. Remexendo todo o catálogo, algo me chamou a atenção. E não, não se tratava de um dos produtos à venda. Numa das páginas, encontrei um envelope de papel que servia para sustentar um produto dentro dele. O que era surpreendente sobre isso? O envelope estava costurado. Um papel de gramatura tão boa que suportava o peso de uma máquina de costura. 

–E se eu costurasse envelopes em placas de madeira?

As quatro partes do livro ficariam suspensas nessas placas, e cartões sanfonados, dos dois lados, representariam os foles. Como cartões, fariam vezes de “orelha”. A “caixa especial” onde o livro viria tinha ganhado forma. Seria fechada com uma presilha de couro, tal qual uma sanfona de verdade. Corri de volta para o painel de referências e meu foco era apenas observar os instrumentos na mão de Gonzagão. Muitas ideias vinham à mente, mas eu tomei uma decisão naquele momento que eu não sei se tomaria hoje: começar a fazer primeiro os livretos, e depois a caixa.


A literatura de cordel seria a base referencial para qualquer livreto que conte alguma coisa sobre cultura nordestina. No design gráfico, você sempre vai beber alguma coisa de lá: as cores, as formas, a xilogravura, os contrastes, a tipografia. Pensei que os fascículos poderiam ter a maior expressão de cordel possível, inclusive encadernados com cordas de sisal. Mas, ao mesmo tempo, na minha mente estudantil, vinha a pergunta: o que poderia fazer com que livretos de cordel pudessem parecer inovadores, uma vez que estou lançando mão de uma referência tão antiga?

Naqueles anos de escola, eu tinha conhecido tudo o que era mais clichê no mundo do design gráfico, especificamente na produção paulistana. Nas minhas mãos, peguei revistas dos mais diversos segmentos. Muitas delas representavam um cenário econômico que definitivamente não existe mais. Algo em todo esse material disparava como uma verdade comum: todas as vezes que alguém queria soar inovador, usava um conhecido recurso da produção gráfica: a faca especial.

Faca especial é aquilo que faz o impresso ter os mais diferentes formatos. Quanto mais complexo seja esse recorte, mais caro o produto final se apresenta. Num projeto acadêmico, dinheiro não seria um problema. Penso que muito provavelmente eu jamais aprovaria fazer livros inteiros em faca especial. Isso acontece com frequência nos livros infantis, e por isso eles custam muito mais do que muitos clássicos na sessão adulta de uma livraria. Limitação superada, ideia definida: livros em faca especial, no formato de bandeirolas de São João. 

A biografia de Luiz Gonzaga é um livro completo de muitas tristezas, permeadas de muita festa. As festas juninas, que o Rei do Baião pintou para todo o Brasil, e que até hoje são celebradas sob sua referência, eram o “cenário” onde sua história seria desenrolada. Livros em formas de bandeirolas e balões. Essa minha decisão me fez pensar que a capa deveria ser modificada, e ela ganhou o desenho de uma bandeirola na frente, com a sobreposição do chapéu em outra foto, e a repetição de chapéus me agradou. 

Miguel Salvador, o “autor do livro” não existe. Não como autor. Miguel atualmente deve ser um homem, mas o conheci um menino, quando trabalhei em um evento no agreste da Paraíba. Na época eu estava muito longe de ser um adulto, mas meu trabalho o inspirava. O que talvez ele não compreendesse era que eu saía inspirado diante da qualidade fotográfica e das soluções de design que ele já apresentava com só 15 anos de idade. Ele era um sinal de que a geração depois de mim nasceria tecnicamente muito mais forte. Numa história sobre heranças nordestinas, o nome de Miguel na capa do livro sobre Luiz Gonzaga era uma forma de homenagear e agradecer a Miguel, mesmo sabendo que ele não veria esse trabalho pronto.


Olho com uma certa emoção as páginas duplas que criei, simulando o padrão de diagramação do livro. É claro que eu faria tudo diferente hoje! Mas gosto da minha inocência de pensar que aquele projeto era viável. Mesmo com erros técnicos, os quais não corrijo para fazer uma apresentação, fico feliz em ver como eu era corajoso para fazer algo que eu nunca tinha feito, colocando uma banca de quem é muito experiente. Um dos pedaços do meu coração é de saudade desse Jefferson que se joga, sem medo de errar. Outro pedaço é esse Jefferson que escreve, que precisa entender o fato de que seus erros atuais têm consequências maiores. Enquanto estou trabalhando, sempre preciso me virar com a vida e seus fragmentos.

Continua…