— Eita! Eita! Lasqueira!
— O que foi, homi?
— Aquele japinha de terno de risca tacando o celular no chão no meio da calçada pro mundo todo vê, espia!
— No dia que eu tiver dinheiro pra tacar um celular desse no concreto duro, minha vida vai ser boa, visse?
Tu nunca vai ser o advogado do patrão, então não tem jeito de uma atrocidade dessa acontecer. Fique tranquilo.

Os serviçais do condomínio empresarial riam. Era uma tarde comum, onde eles viam mais um executivo dando algum tipo de chilique. Nesse caso, era um rapaz de ascendência oriental, usando um terno de risca de giz, com uma bolsa numa mão, descontando sua frustração em jogar um aparelho celular no chão. Frágil, o telefone se desfez em pedaços, enquanto o aparente advogado caminhava frustrado, em direção ao prédio-estacionamento. O barulho da quebra e um xingamento gritado fizeram com que as pessoas ao redor da cena diminuíssem o passo, para entender melhor o que acontecia e obter maiores explicações. Com uma discrição oriental clássica, o jovem permaneceu calado e saiu caminhando em sentido diagonal. Ninguém ousava dirigir-lhe a palavra, e de longe, alguns empregados dos serviços gerais observavam tudo. Afinal, limpar os cacos de metal e vidro seria tarefa de alguém. 

Mesmo quem conhecia Hatsuke, entendia que aquela não era uma boa hora para dialogar.  

— Costa, quem era aquele cara?
— Izumi Hatsuke, um dos advogados do Dustin Prince. Em teoria, o melhor amigo dele. E, provavelmente, nosso Príncipe Encantado andou frustrando mais amigos por aí.
— Ele não entende que vai ser cada vez pior para ele continuar machucando gente pra todo lado? E se esse povo abre a boca?
— Quem poderia abrir bem a boca já foi silenciado para sempre. Pensando bem, talvez hoje seja a última vez. 

O Detetive Costa chegava ao condomínio onde funcionava a Prince Enterprises acompanhado de um oficial de justiça. Eles tinham um mandado para realizar uma entrega ao próprio Dustin Prince, e procuravam seu escritório. Foi inevitável aos dois policiais ver a cena de destempero do advogado em pleno passeio público, o que deixou os dois de orelha atenta. Talvez a estrutura de defesa de Dustin estava ruindo, tendo em vista uma possível crise com o melhor de seus advogados.

— Costa, a que devo sua ilustre visita?
— Senhorita TigerLily, eu tenho uma ordem judicial para encontrar o Mr. Prince.
— Caro detetive, os senhores já sabem que o Mr. Prince tem uma agenda lotada e…

Costa interrompe a secretária, e se dirige obstinadamente para a porta da sala principal daquele escritório:

—  Ele está ocupado machucando mais pessoas, como é o feitio dele
—  Essa acusação é muito séria, senhor detetive!
—  Eu acredito que a senhorita não esteja disposta a analisar comigo a quantidade de acusações sérias que uma jovem secretária de origem humilde tem envolvido o seu próprio nome, sob investigação policial…


Tigerlilly corre pelo corredor adiante dos policiais e empurra a porta do chefe, para falar com ele antes dos agentes. Era tarde para informações mais profundas. Ela consegue ao menos dizer:

— Eles tem um mandado e eu não consegui bloquear a entrada deles aqui, Mister Prince. 

Dustin se mantinha de costas, com o olhar fixo na grande janela de vidro atrás de sua mesa. Ela dava visão para a calçada externa, onde Costa encontrou Hatsuke alguns minutos atrás. Para o detetive, era como se Prince houvesse assistido tudo o que aconteceu, e se deliciado com seu melhor amigo perdendo a cabeça em público. Era, ao menos, a impressão que passava. Era sabido que nunca é bom esperar a melhor atitude de um homem como ele. 

— Está tudo bem. Deixe o Everson entrar. Ele sabe que só pode invadir um lugar assim com um mandado judicial e deve ter trazido o oficial de justiça para empunhar a chave mestra da polícia. Volte ao trabalho. É provável que ele tenha coisas sensíveis a me dizer.

Tigerlilly não levanta a cabeça e deixa a ante sala do escritório central de cabeça baixa. Enquanto isso, Costa caminha para se posicionar diante de Prince, tendo a grande mesa de características vintage, coberta de vidro, como separação entre os dois. 

— Eu não te vejo desde o funeral. Como está a família dele?
— Eu não deveria te deixar saber nada sobre o Jeff, mesmo se ele não estivesse morto. Mas, como ele gostaria que eu te dissesse isso, posso falar que sua família está bem e amparada pela justiça até que tudo se esclareça.
—  Então me permita repetir a mesma pergunta que a Senhorita Tigerlily fez ali fora: a que devemos a visita dos policiais ao nosso escritório?


Dustin acaricia sua barba e cruza os braços, esperando uma resposta do detetive.

 — Você sabe bem que cuidamos do Jeff durante os últimos minutos de vida dele. E temos cumprido alguns de seus últimos desejos. Hoje estamos aqui em função de um deles: te entregar esta carta. 

Costa retira um envelope amarelo de seu colete e estende até Dustin, que não faz menção de descruzar os braços. Com a tensão do momento, Costa repousa o envelope na mesa de trabalho, e dá dois passos para trás. Por sua vez, Prince parece perplexo, como se ali estivesse um pedaço do corpo do próprio Jeff. Algo que lhe causava repulsa e medo.

Costa continuou:

— Por minha vontade, ele teria esquecido seu nome ou qualquer coisa que você significou na vida dele. Mas, eu não impediria meu amigo de ter um último pedido atendido. Muito já foi negado a ele.
— Realmente, detetive, Jeff e eu temos uma linguagem só nossa e provavelmente ele tinha muito a me dizer antes de partir. Eu te agradeço por ser tão fiel às pessoas que você ama. É algo admirável de se ver em nossos dias.
— Um dia essa sua máscara de educação extrema e boa criação vai cair, Prince. E eu vou estar lá para ver.
—  Nos vemos num outro tribunal, detetive.
—  Ou num próximo funeral, se eu tiver mais sorte. 

Costa sai rapidamente da sala, deixando o escritório atônito com a presença de policiais armados no ambiente de trabalho. Tigerlily e o time de clima organizacional começam a aliviar as pessoas, dizendo que a presença da polícia tinha a ver com crimes que Dustin estava investigando, a respeito de ter suas finanças lesadas por um advogado. A história parecia convincente. 

 

***

Você,

Agora, você tem essa carta nas mãos. Mas, ao contrário do que parecia óbvio, essa carta não te tem como destinatário. Essa mensagem é para mim mesmo, e só te tenho como uma testemunha desse momento que vivi tempos atrás, quando eu ainda estava preso e você imaginava ter sua culpa expurgada através de um bode expiatório. 

Eu,
Hoje eu acordei pensando o motivo pelo qual me mantenho no mesmo lugar onde tudo já me faz tão mal e eu sei disso. Eu realmente poderia ver os portões de St. Leonard se abrirem pra mim com uma facilidade majestosa… Se eu escolhesse chamar os juízes e fazer um discurso que teria mais ou menos o tamanho dessa carta. Eu realmente poderia fazer isso. E eu realmente escolhi não fazer. 

Antes de trair qualquer pessoa e parecer que me tornei o craque do jogo, eu decidi não me trair. Que loucura! Isso significa passar mais um Natal atrás dessas paredes brancas. Hoje cedo enviei mais uma carta para a minha mãe, enquanto não tenho certeza alguma se ela vai poder me ler. Talvez meu irmão possa. Eu, no lugar dele, nem conseguiria. 

Escolhi acreditar que eu sim, consigo. Consigo me manter fiel ao que acredito, a quem eu sou e ao que sinto. Consigo acreditar no tamanho do amor que eu senti, e hoje tenho certeza que senti tudo isso sozinho. Pra ser sincero, que privilégio poder não dividir com seu ninguém algo tão nobre, tão puro e tão verdadeiro. Eu entreguei minha vida por outra pessoa que, a essa hora, não se importa com isso. E sigo achando que sou um privilegiado por ter essa oportunidade, por mais que nenhuma pessoa que me ama concorde comigo. 

Todos os dias são tristes, apesar dos avanços. Um homem privado de liberdade também está privado de perspectivas e de plenitude, sendo impossível pensar de outro modo, ou jogar algum tipo de jogo do contente”. O que foi bom, de todos esses anos, eu vou guardar. Se eu chorar, tá tudo bem também. 

Hoje eu sei que tudo vai passar. O agora, tão nublado e violento já está passando. E por mais que eu tenha muita esperança no que vem aí, isso que vem, também vai passar. 

Se eu fui uma mera peça de um jogo, se vamos ter um milagre e um dia eu vou poder caminhar pela rua tranquilamente, como eu fazia antes da Pandemia chegar, eu realmente não sei. Se há um fim para esse nó na garganta que tira a minha qualidade de sono há três anos, eu também não faço ideia. Já aceitei que não controlo o passado, e muito menos o futuro. Cheguei ao ponto que decidi não sofrer (por mais que seja difícil, na maioria das manhãs sem “bom dia”, manter essa decisão), só porque me soa completamente desnecessário. 

E apesar de você nunca ter me perguntado, eu estou bem. Você nunca me disse das suas saudades, mas eu sinto sua falta. Foi você que quis se afastar. Os motivos não são importantes. Você nunca me pediu, mas já te perdoei.

Com o amor que sempre devo a você,

Jeff

 

***

O envelope tinha um tom quase fluorescente. Muito, para um envelope amarelo. Ele contrastava com os tons escuros das diferentes texturas de madeira da grande sala privada de Dustin Prince. Isso era o que se podia encontrar atrás da sua estante de livros, o que causava a impressão de que a sala do dono da Prince Enterprises era pequena. Ao melhor estilo de um filme de suspense, um grande salão estava escondido ali: móveis antigos, uma estética western e muitos animais empalhados. Caças suas, segundo alguns. Na área central, sofás confortáveis de couro organizados em círculo, em volta de uma mesa-tronco de cedro. 

O envelope repousava ali, ainda fechado, sob o olhar de um homem em conflito sobre abrí-lo ou não. Esse é o grande resumo daquela tensão. Será que a carta se tornava uma prova de tudo o que tinha acontecido? Será que as mensagens de um Jeff magoado iriam surtir o triplo de machucados, uma vez que viriam de uma pessoa morta? Quão fúnebre seria abrir o envelope e ficar com esse sabor de psicografia na boca? “Tudo já ficou resolvido. Ele não tem mais nada a dizer”. 

Um maltipoo de pelagem multicolorida aparece correndo, adentrando repentinamente o campo de visão de Dustin, sentando-se no sofá em frente, atrás da mesa de centro. Ele fita o dono com um olhar atento, como se quisesse dizer algo. Habitualmente, o homem suspira enquanto aperta toda a sua barba, e se dirige ao pequeno mascote: 

— Eu deveria abrir esse envelope?