Seja consciente

Muito tempo depois, começou a pandemia do coronavírus. Seria inevitável não chamar esse fato histórico pelo nome em algum momento. Ele é importante para dar contexto sobre a hora em que o meu trabalho com o Duka começaria. Durante sua carreira musical, ele já tinha lançado alguns projetos, com clipes que eu tinha visualizado e feito minha parte para incentivar digitalmente. A pandemia mexeu no processo criativo de todo mundo, e vivendo a angústia da quarentena, o Duka compôs “Surto Coletivo“.

A canção tinha outro nome e chegou a mim com esse outro nome. Receber o arquivo foi um verdadeiro flashback de quando ele me enviava suas composições gravadas em casa pelo MSN messenger. Agora se tratava de uma canção inteira, mixada em estúdio, até com uma participação especial. Escuto os primeiros acordes e rebato para o Duka sem medo de ser feliz: “é Albertine! Você sampleou (samplear é pegar uma partezinha de uma música e usá-la como elemento decorativo de uma outra música) a batida de cordas!” 

Albertine é uma canção de Brooke Fraser, uma cantora neozelandesa que admiramos muito, desde nossa adolescência. Fechei os olhos e imaginei a capa do álbum que traz a canção “sampleada” pelo Duka. Dois insights me vem à mente: o piso de madeira, o jeito “caseiro” que essa capa tinha. A segunda coisa é uma citação da própria Brooke, ao explicar a capa de seu álbum:

“É o conceito de dois nomes na capa, escritos com a mesma fonte, do mesmo tamanho. Elementos num espaço onde ninguém é mais importante que ninguém”.

Albertine é o nome de uma criança que se conectou ao coração de Brooke durante sua passagem por Ruanda, numa ação humanitária. Aquela frase fazia muito sentido para mim agora, não apenas porque a música estava citada dentro do trabalho do Duka, mas porque a pandemia colocou nossos sentimentos e expectativas exatamente no mesmo lugar. Todos atravessam um momento de instabilidade e incerteza. Agora, ninguém parece maior ou melhor do que ninguém. A mensagem máxima de ‘Surto’ mora bem aqui.

Trocando áudios com o Duka, fiz o rascunho da capa de uma vez só. Naquele momento, a música ainda tinha um outro nome. Pensei no conceito dos nomes exatamente como aparecem em Albertine. Aprovamos esta ideia juntos e partimos para a produção das fotos. Desde o momento em que ouvi que a canção seria sobre o isolamento social, precisava que a arte refletisse isso e marcasse este momento, especialmente quando ele tivesse passado. Pedi aos dois cantores que fizessem fotos em casa, em seus ambientes, de forma bem casual. Cuidei para que a qualidade das fotos não parecesse profissional. Era uma resposta técnica ao pedido do Duka: “seja consciente”. Num país onde a realidade de uma pandemia global é negada por nossos governantes máximos, era preciso dizê-lo de todas as formas possíveis. Eu só me juntei ao coro, sendo uma terceira voz com eles dois.

A produção do layout foi tão frutífera que acabei tendo uma série de ideias dentro da mesma ideia. Isso gerou mais que uma capa na ideia final. Um terceiro ponto que eu gostaria de inserir no projeto era o design da User Interface do Instagram, algo para o que temos olhado constantemente durante a quarentena e virou nossa “janela” em muitos momentos. Um quadrado sobre o outro faz a referência sobre as ‘lives’ que embalaram a quarentena de todos em algum momento.

Optamos pelo caminho mais simples e que melhor representava o conceito original. O nome da música e dos cantores estão todos num mesmo espaço, sem brigar, mas não totalmente simétricos ou harmônicos. É a realidade da complexidade dos tempos pandêmicos dentro do invólucro “cool”, representado pelas paletas de cor (marrom, verde, brim, cinza e uma porcelana do starbucks). Estava pronto. Sintonizados mais uma vez, entregamos a capa de “Surto Coletivo”, um dos projetos que mais revela como eu me sinto agora, enquanto escrevo.

 

View this post on Instagram

 

A post shared by Jeff* (@todojeff) on