Até voltar a mim

O processo da criação de uma marca pode tomar dois caminhos: o caminho do designer, que pode ser empoderado (ou não) pelo cliente, ou o caminho do próprio cliente. Nos dias em que escrevo isso, a segunda opção é constantemente desvalorizada. Na verdade, pensar a identidade de um projeto a partir de sua raiz, sua ideia principal, seus valores e seu propósito, é muito mais trabalhoso. Se torna ainda mais árido quando seu cliente não tem nenhuma consciência sobre os pontos que acabei de citar. Sim, esse cara era o Victor.

O projeto da marca VA Fotografia apareceu como demanda quando a pandemia já era uma realidade, o que impedia o acontecimento do date perfeito para ele: um café. Trocamos isso por uma videoconferência, o que seria mais seguro àquela altura do isolamento social. Conversamos muito. Me lembro de não ter cobrado um preço alto, e provavelmente seja esta a única vez em que tocarei no assunto “preço” por aqui. Minha motivação em não cobrar caro era a minha vontade de ser parte daquele projeto. Ele ajudaria meu portfólio, não quebraria a sequência de capítulos, e muito dificilmente eu conseguiria um trabalho do tipo em tão pouco tempo. Era pegar ou largar, para mim mesmo.

Desenhar a bússola de novo mantendo o nome da empresa no centro, o que me “amarrava” a um monograma, parecia simples. E eu estava enganado. Já cansado de buscar referências, passando o olho sobre o desenho de várias bússolas e imagens, encontrei uma específica, da qual o monograma saltou aos meus olhos, como se alguém o desenhasse em traços. Vi as duas letras. Peguei um papel qualquer na minha mesa e desenhei o que minha intuição viu. Dava certo, e ainda com um volume central para dar uma “ilusão 3D” a tudo. Nada poderia soar tão 2013. E eu amava que tudo soasse 2013.

2013 foi o ano em que saí da famosa zona de conforto. Eu decidi deixar meus pais e ir morar sozinho numa cidade estranha, por causa de um sonho. Foi em 2013 que comecei a pensar nessas páginas que escrevo, mas não fazia ideia de como solidificar isso. Naquele ano, tantos projetos passavam pela minha mente! Era como eu via minha vida no futuro que eu vivo hoje. Mesmo com tantos sonhos, eu também me via sem norte. Eu terminei minha primeira conversa com o Victor vendo nele mesmo, o Jeff de 2013, andando em aeroportos com a casa nas costas e uma bússola na mão. Um retirante que nunca mais se sentiria em casa de novo.

O meu fotógrafo, por sua vez, se revelava mais que um fotógrafo. A cada dez minutos da conversa, ele abria na mesa um outro projeto. Se eu tivesse saído daquela reunião com a missão de criar marcas para cada uma das ideias do Victor, eu estaria apresentando aqui não apenas um manual, mais uns seis. E estou sendo generoso. Ele podia conceber muito mais do que ele sabia. Porém, ele não tinha o que era mais necessário saber antes de tudo: a noção quem é ele mesmo. Era fácil apresentar tantos projetos. Era difícil ver-se encabeçando e apresentando cada um deles como, de fato, seu criador. Acostumado com os bastidores, Victor sabia que precisava contar ele mesmo a sua história ao mundo. Mas não se sentia capaz de fazê-lo com seu próprio corpo, seu próprio rosto e sua própria voz.

Foi quando decidi que o caminho da identidade visual teria tudo o que é importante para aquela pessoa. Na visão dele, casamentos são jornadas. E, mesmo (ainda) solteiro, ele tem muita razão. A bússola estava resolvida. O restante da identidade seria menos complicado. De um ponto de vista elegante e masculino, não tomamos o nosso café juntos mas a bebida veio em tons na paleta de cor. Decidi trocar os destaques do Instagram por imagens de mapas com as localidades dos casamentos que ele já tinha realizado pelo Sudeste brasileiro. O conceito me soava completo.

Bem perto da entrega de tudo, tivemos uma segunda conversa. Nela, começamos a pensar sobre o propósito dos projetos que estávamos tirando da gaveta. Eu tomo cuidado ao escrever para contar essa história, simplesmente porque algumas coisas são muito complicadas de explicar. Uma delas são as nossas crenças, as coisas nas quais temos fé. Victor e eu acreditamos que nosso destino não foi escrito por nós, e que existe uma boa voz que nos guia através de nossa jornada, enxugando nossas lágrimas e lembrando em nosso coração sobre todos os bons princípios que aprendemos com a Verdade. Naquela altura, meu instagram já estava aberto e só perdia seguidores. Eu me sentia acuado pelos projetos de marketing digital que prometiam sucesso acelerado e numérico, envolvido por hábitos e linguagens que me resultaram tóxicas. Escrever já me fazia mal. O senso de obrigação por gerar conteúdo me fazia ter raiva do que eu estava projetando. Eu também tinha esquecido quem eu realmente era.

E passamos uma noite inteira recobrando a nossa memória. De repente, começamos a listar todas as coisas que sabíamos sobre nós mesmos. Todas as promessas que viriam a moldar nosso futuro. Todas as garantias de que seremos protegidos, principalmente quando tudo desse errado. A certeza de que não estávamos sozinhos no processo. Nos lembramos sobre nós mesmos. Choramos por nós. Oramos por nós. Vimos a bússola girar, e de um modo curioso, o Norte não apontava para lugar algum. O ponteiro estava fixo para o nosso próprio peito.

Nos levantamos exaustos na tarde seguinte, porque só dormimos quando o dia amanheceu. Ele foi tomar coragem para gravar vídeos e afirmar veementemente que era o autor daquele conteúdo. Eu fui converter os desenhos para que fossem usados nas edições de posts e fotos. Criando um novo avatar para a conta do instagram, coloquei a bússola sobre o olho do Victor. Porque dali em diante, não veríamos as coisas do mesmo jeito.