Razões para Sonhar
Minha vida me mostrou duas posições que alguém pode ter enquanto sofre opressões. A primeira delas é dar foco e palco à dor. E apenas isso. A dor é um sinal de que algo não vai bem no corpo (ou na alma), e um tratamento se faz necessário. Usando esse termo fisiológico, é incoerente dizer que não faz sentido dar foco à dor. O problema está em fazer apenas isso, sem progredir para o tratamento. Uma dor não tratada pode ser letal.
A segunda coisa é buscar inspiração para seguir em frente. Como meninos pretos no Brasil, Tiago e eu somos parte de um grupo teimoso que insiste em dizer: “será que não podemos um pouco além do que o que dizem que podemos ir?” Isso me lembra a minha mãe. Eu nunca entendi o nível do sofrimento que ela viveu por tentar ingressar numa família branca, a do meu pai. Acredito que há descobertas que ela segue fazendo. O racismo tem esse poder reverso de revelar-se até mesmo muitos anos depois de ter acontecido. Uma ferida invisível que vai apodrecendo e nos esquecemos de tratar, por não entender a origem daquela dor.
Minha mãe tem preferidos entre meus amigos, obviamente. O Tiago é o único por quem ela sempre pergunta quando conversamos.
O racismo estrutural em nossa sociedade nos fez viver experiências amargas. Era difícil lidar com o que hoje vejo (porque antes não via) como retaliação pelo fato de sempre estarmos envolvidos em posições de liderança. Ignoramos a faixa, despreocupadamente e com uma inocência que não se importava com as consequências. Em momentos e âmbitos diferentes, sofremos sérios ataques à nossa reputação e caráter, com mentiras infundadas e o que hoje conhecemos como Fake News (na verdade, essas pessoas continuam espalhando Fake News, desta vez para apoiar o Bolsonarismo). Isso era necessário, uma vez que era impossível desqualificar a qualidade do trabalho que realizávamos àquela altura.
Em 2016, Tiago e eu decidimos não ser parte da mesma igreja. Eu me mudaria para São Paulo, sem passado, sem amigos, só com uma mala e meus móveis. Ele iria para um outro lado e se desligaria da igreja institucional. Essa mudança de rumos não nos afastou. Foi aí que percebemos que queríamos viver e trabalhar por algo muito maior, mas ainda seríamos apresentados ao assunto que nos faria retomar nossa parceria.
Quatro anos depois, tínhamos bagagem. Pude ressignificar tudo o que passei vivendo momentos diferentes, apesar de uma série de percalços, numa comunidade muito longe do contexto tóxico em que vivi “uma vida inteira“. A discussão racial havia avançado. Eu já havia lido muito. Beyoncé já havia lançado Lemonade e Black Is King. Eu tinha organizado em minha mente o que a igreja representava na minha vida e qual o papel do evangelicalismo brasileiro na minha formação. Mais do que isso, eu entendi minha ancestralidade e posição na sociedade, e cheguei a uma surpreendente e atrasada conclusão, da qual eu passava a ser consciente a partir de então:
Eu sou um homem preto.
“Um canal no Youtube?”
Foi quando o Tiago se programou para me visitar, trazendo uma pasta cheia de recortes e post-its. “Chegou a hora de executar o projeto que vai mudar a vida inteira”. Sempre achei engraçado como o Ti não se refere à vida dele como sua própria vida. No que diz respeito a projetos, ele apenas usa o artigo definido. “A vida” se refere a ele e a todos os que estão envolvidos em um projeto. E, de certo modo, muitas vezes penso que estamos vivendo uma vida só. Para ser sincero, o que realmente sinto é que toda a África diaspórica no Brasil vive e sente junto. Em 2020, mais que nunca.
“Um canal no YouTube?” Perguntei, fazendo uma leve cara de nojo. Me explico: não tenho aversão ao YouTube, mas não recomendo que um influenciador digital comece um projeto desses. Naquele momento eu acreditava que os grandes nomes desta rede social já estavam erguidos desde 2009, e não haveria como “estourar” através de um canal ali. Mas, a ascendência em Virgem do Tiago me fazia crer que por trás da tentativa de fazer algo sem retorno imediato, teríamos um plano bem pensado. Minha intuição estava certa.
Os papéis e post-its que o Tiago trazia me mostravam uma grade de conteúdo para um canal do YouTube, com conteúdo afrocentrado, misturando entretenimento, variedades, conscientização política, notícias e o ponto de vista do próprio Tiago a respeito dos acontecimentos em um mundo onde ele mesmo está vivendo. A mensagem de protagonismo negro no canal é um recado principalmente às novas gerações de pretos no interior de São Paulo. Esse público é o principal interlocutor do Tiago, enquanto ele publica os vídeos no canal.
Aceitei começar a formular um plano de identidade visual. Para todas as áreas importantes do projeto, o Ti conseguiu uma pessoa que representava a própria experiência dele com aquilo. A primeira empresa aberta por ele (que é administrador de formação) foi inspirada no modo como eu trabalhava. A produtora audiovisual quase se tornou uma agência de publicidade e deu a ele, junto a outros amigos queridos, experiência para assumir ideias maiores posteriormente. Foi nesse momento que, no meio do caos em que vivíamos, começamos a ter razões para sonhar.
Confesso que, à princípio, foi complicado me render aos clichês que os canais no YouTube possuem, como mostrar a cara do apresentador em praticamente todas as peças. Mas, aos poucos, fui assimilando a importância do engajamento e trazendo elementos que serviriam como soluções para os problemáticos “cacoetes” dos usuários da plataforma. Tal como a proposta editorial dos vídeos, eu precisava fazer uma salada: tem que ter áfrica, tem que ter viagens, tem que ter cor, tem que ter cultura hip-hop… Mas me faltava um elemento gráfico.
A resposta ao meu questionamento veio do próprio Tiago, como se ele pudesse terminar o parágrafo anterior: “tem que ter triângulo“. Segundo ele mesmo, “triângulo fala de base, fala de mais lados na vida do que apenas dois. E tudo isso, sem deixar de subir, de ir além.” A forma geométrica preferida do meu amigo era um resumo de sua própria jornada. Posso dizer que comecei “o bolo pela cereja”, mas esse caminho me parecia mais rápido e assertivo.
Depois, o trabalho veio apenas em organizar a minha própria lista, já que o elemento gráfico era uma forma geométrica muito forte. A cultura hip-hop estava representada no tipo de letra que seria associado ao triângulo para formar a marca do canal. As cores chegaram intuitivamente, mas com cuidado para que os tons harmonizassem com a pele escura do Tiago, o que me fez excluir o preto e manter apenas as outras quatro cores tradicionais nas bandeiras africanas: verde, azul, amarelo e vermelho. A textura de mapa viria como uma linha do horizonte, ou uma montanha, para lembrar a experiência transcedental de viajar. As pinturas iorubás completariam o todo com delicadeza, aplicadas a um fundo azul, relembrando nossa ancestralidade do outro lado do oceano. A identidade visual é um grande desenho de uma paisagem, que nos convida a olhar para o amanhã.
No dia da consciência negra de 2020, o canal lançou “Black“, seu primeiro curta-metragem, o qual tive o privilégio de ser um de seus produtores associados. Desde a primeira reunião, decidimos que novembro sempre seria um mês especial, para relembrar a morte de Zumbi dos Palmares e a queda da Civilização Palmarina, da qual sou descendente direto. Mesmo em um tempo muito difícil, de forma conjuntural, para ser negro no Brasil, entendi que consciência negra é a sua compreensão a respeito da sua história, identidade e ancestralidade. A cada dia eu cresço nessa jornada, tentando conservar a inocência que me levou a “me lançar” sem medo do que aconteceria. Agora, busco o lugar do protagonismo consciente do que estou fazendo: abrindo janelas para que mais meninos da minha cor possam ter suas próprias razões para sonhar.