Prólogo
– E o que seria, afinal, a expressão do significado de uma vida? Eu lamento profundamente que façamos a escolha de contemplar tal mistério quando diante de sua finitude, complexidade, pequenez e fragilidade. A maior das grandezas pode acabar a qualquer momento, e é nesse instante que a mente se vê cirandada de pontos de interrogação. Justos, de verdade, mas em nada aliviam ou modificam as circunstâncias:
E se tivéssemos mais um minuto? E se a escolha fosse outra? Eu tinha um minuto a mais para ver se meu amigo estava bem? E se eu tivesse escolhido estar lá em vez de atender a correria da vida? Se eu tivesse tido a oportunidade de uma última conversa? O que o Jeff me diria? Talvez eu tenha conseguido listar o pensamento de alguns de vocês nessa tarde chuvosa. Por mais justas que essas perguntas sejam, nenhuma delas pode mudar o fato de que nós somos como uma nuvem, como uma relva que desaparece.
Aos 35 anos, Jeff foi além da expectativa de vida dos homens da cor dele, no lugar onde ele nasceu. Aos 35, ele foi mais longe do que achava que poderia ir. E ele sabia que vocês todos o admiravam por isso, por mais que nem todo mundo aqui fosse bom em verbalizá-lo. Eu estive com ele algumas vezes em três longos anos de sua vida, e sempre amei como ele era bom em pegar coisas no ar. Diante das especulações, eu fico com a certeza de que esse homem com aura de menino nunca duvidou que era acreditado, apostado, admirado. Tenho certeza que, ao meu lado, vocês fizeram parte da torcida para que ele fosse feliz. Dou a boa notícia a todos: a despeito da dor que enfrentava todos os dias por vestir a própria pele, ele conseguiu ser feliz para além disso.
Talvez a maioria de vocês não saiba qual era o maior sonho do ‘todojeff’. Era o tipo de informação que ele só compartilhava em conversas íntimas demais, mas como quem porta parte de um testamento verbal, em minha função sacerdotal, eu compartilho a vocês: o maior sonho dele era ser uma inspiração. Inspirar vocês a viverem criativamente suas vidas, do modo que ele já sabia fazer de um jeito que soava muito natural, mas só ele sabia o quanto custava. Essa inspiração será plantada na terra hoje, e é minha oração que, de modo muito simbólico, essa semente floresça para liberar criatividade em muitos corações, a começar de nós mesmos.”
O padre Dimitri respirou fundo, e percebendo as primeiras gotas de chuva voltando a cair sobre o antigo cemitério da cidade, prosseguiu, abrindo um sorriso comedido:
– Parece que o Grande Agricultor veio regar a plantação de hoje. Pra mim, aqui mora o belo do ciclo da vida. Ela sempre tem que continuar. É que bom que ela continua!
Dando um sinal para os coveiros e para a equipe técnica do cemitério, assentiu para que o sepultamento continuasse. A ataúde sisuda, descia lentamente a cova, envolvida de girassóis que resistiam às gotas de água, junto a todas as flores que cresciam nos jazigos centenários ao redor da cova, bem como as que compunham as coroas de flores enviadas por grupos de amigos, coletivos artísticos, igrejas e familiares.
Ao levantar os olhos para enxugar seus óculos, Robson se dá conta de algo não muito agradável em seu campo de visão:
– Zaim, o que esse fi de quenga tá fazendo aqui?
– O criminoso sempre volta pra cena do crime. E tem horas que eu acho que estou morando em um romance policial, desde que tudo isso começou, mano.
– O filho da puta tá usando as jóias que o Jeff deu de presente a ele. Que cena bizarra.
Ramo interfere na conversa:
– Rapa, eu sei que a situação é muito complicada mas as pessoas estão começando a notar que estamos falando sobre o Dustin. É tudo o que ele quer, agora.
– O Roger está certo – interferiu Thiago – o que quer que aconteça, vamos fingir que esse cara não está aqui. Eu sei que é difícil e a minha vontade é enterrar esse infeliz na cova ali do lado, mas ainda seria pouco pelo que ele precisa pagar. Vamo segurar a onda.
Enquanto Zaim tenta olhar para outra direção, sem querer encarar alguém que não gostaria que estivesse presente, Robson volta a olhar para as pedras ao lado da cova, enquanto balança a cabeça sem parar. Jorge confunde o gesto com um sinal de profunda tristeza, e se aproxima dele, tentando consolá-lo:
– Obrigado por terem sido os irmãos do meu irmão até aqui. Vocês foram meus braços quando eu não tinha condições de abraçar o Jefinho. Eu tenho certeza que cada um deu o seu melhor para que esse dia não acontecesse, e eu só agradeço a vocês.
– Que nada, seu Jorge. Foi um privilégio pra mim ser irmão do seu irmão. Eu agradeço por você abrir mão dele pra gente.
Dustin tinha uma flor nas mãos, assim como a maioria dos presentes na cerimônia. Ao perceber que o caixão começava a descer à sepultura, atirou a sua junto às demais que caíam sobre ele e não quis ver o enterro até o fim. Inteligentemente acompanhado de seu advogado e dois guarda-costas, abriu caminho entre as pessoas para deixar o cemitério, sob o olhar dos Vilões, que não esboçaram reação alguma, além da expressão indignada.
– O pior é que sei que o Jeff ia querer que ele estivesse. Por mais que isso não faça sentido para mais ninguém.
– Pois é, Carinhoso – Guto responde – Mas, que parte desse dia faz algum sentido pra alguém aqui?
Enquanto as pás de terra eram jogadas na cova, aquele grupo de pessoas caminhava disperso pela chuva, um a um, em direção de suas casas. Aquele lugar era em si uma morada. Ramo percebe a inscrição sobre o pórtico, a qual não tinha notado ao entrar no cemitério e a lê, em voz baixa:
– Morituri Mortuis.