– Eu fui lá ver.
Respondeu Renan. 

 – Renan, você tem que me garantir que isso vai chegar aqui no Co.Vil em pelo menos duas horas. Tem uma multidão do lado de fora jurando que vai dar certo. E se não der, esse enterro vai virar… Um enterro mesmo.” 

Zaim parecia preocupado trocando áudios com Renan, na sala de reuniões do ateliê/galeria. Renan não estava no Brasil, e a Fraternidade estava feliz com a notícia de que ele estava expondo na Bienal de Veneza.

– Eu até pensei em voltar. Tenho certeza que o Jeff esperava que eu fosse segurar o caixão dele com vocês. Nalu está muito sentida aqui, mas ela me convenceu que ele gostaria muito que eu ficasse aqui pra viver essa oportunidade.

– Eu tenho que te dar razão – retrucou Robson – Ele iria escolher que você não desistisse de um momento importante desses. Aqui a gente dá conta. Carinhoso e Ramo estão dando assistência para a família do Jeff que veio da cidade deles pra cá. Enquanto isso, Zaim, Consp e eu estamos tocando a exposição.

– Enviei uma mensagem para a assistente da Senhorita Bispo, aquela que atuou com a gente desde a época da Ri Depois. Ela foi muito solícita com a gente e já separou a obra para enviar ao Co.Vil. O momento é tenso, mas a galera tem que esperar. Até hoje eu não entendi porque a polícia restringiu o número de pessoas no velório e no cemitério, mas a exposição vai permitir que mais gente veja o Jeff pela última vez, ainda que simbolicamente.

A ideia dos vilões era comovente, mas não tinha nada de espontânea. Com a já mencionada restrição do Ministério Público ao cemitério de St. Leonard no dia anterior, o coletivo preparava um “sepultamento artístico” para atrair todas as pessoas que estavam comovidas com o caso há anos, principalmente com sua trágica reviravolta ao final. A ideia seria esvaziar o Co.Vil e apresentar uma única obra, a primeira oficialmente creditada a Jeff, e vendida em sua primeira exibição pública.

Chovia fino, uma garoa que aquela cidade não via há anos. O chão de pedras portuguesas em torno da galeria estava especialmente branco, pela lavagem natural das gotículas de água. Mas, ao mesmo tempo, especialmente escorregadio. Isso preocupava o caminhar das muitas pessoas que já se aglomeravam à porta do galpão, à espera de uma abertura. Os vilões anunciaram a exposição nos meios, que já previam seu posicionamento frente à morte de um membro. Com certeza, de algum modo, o fato geraria discurso e atos políticos, uma vez que atravessava completamente a fala do próprio coletivo de artistas pretos.

***

No meio do aglomerado de guardas-chuva e capas plásticas, algumas pessoas se molhavam. Nesse grupo, artistas, curadores, intelectuais, amigos distantes de Jeff e algumas pessoas que ninguém fazia ideia a respeito de quem eram. Muitos curiosos com o que aconteceria. Gente vestida totalmente de preto. Outros de branco. Outros com as roupas outrora licenciadas pelo artistas a diferentes marcas do país. Serpentes. Muitas delas. Jóias, bonés, bolsas e adereços serpentiformes faziam daquele séquito uma mistura de marcha fúnebre com um culto a um deus-serpente. A semelhança até evocava algo que Jeff não era entusiasta em vida: performances. 

Um motoboy clássico pede passagem no meio do que já parecia um grupo de algumas centenas de pessoas. Usando um macacão plástico para se proteger da chuva e sem retirar o capacete, carregava com cuidado um pacote envolto em camadas de plástico bolha bem grosso, com um bilhete em papel vermelho, já desgastado pelas gotas de chuva. Algumas pessoas percebem, pelo formato do pacote, o que estava nas mãos do entregador. Essa percepção faz com que se inicie um movimento de abrir passagem a ele. Um corredor, assim, se forma até a porta do Co.Vil.

Usando um gorro preto, Daniel abre a porta, cumprimenta o entregador e entra com o pacote, agradecendo gentilmente pela entrega. Depois de verificar que as pessoas esperavam que algo fosse dito a elas, decide não falar nada e fecha a porta mais uma vez, sem responder nenhuma das perguntas a respeito de que horas começaria a Vernissage

– Rapa, o pacote chegou. Carinhoso, por favor, acho que a gente já pode desempacotar. 

Carinhoso, Cruz e um grupo de pessoas responsáveis pela montagem tomam o pacote, enquanto Daniel segura o bilhete vermelho que estava preso por uma delicada fita adesiva estampada: 

A meus vilões, meus sentimentos.
Nesses momentos onde nem eu, nem vocês estão entendendo muita coisa, deixo o que não precisa de explicação: um abraço de irmã.
|Bispo. 

Comovido pela mensagem, Daniel fotografa o bilhete e o envia no grupo dos vilões, pelo aplicativo de mensagens. Recebe alguns emojis de coração como reação. Enquanto isso, os demais estão empenhados no processo de retirar suas obras do salão principal a fim de que apenas uma permaneça ali, fixada na parede pelo curador do grupo, Carinhoso.

 

– “Convergência” foi a primeira obra do Jeff, e é ela que vai representar o corpo dele, aqui.
–  Corpo que, inclusive ninguém viu, certo? – Comenta Zaim, sussurrando.
–  Eu não vi corpo algum. Eu não sei se algum de nós viu.
–  Apenas eu, você, Robson e Consp estavam na cerimônia fechada para a família. E o Jorge não abriu o caixão em momento algum.
–  Talvez eles já tinham feito o reconhecimento do corpo e não queriam mostrá-lo a nós, nào sei.
– Eu também não, mas que a história segue mal contada, isso segue.

O cochicho na frente do quadro é interrompido por Ramo e Consp, que estavam na função de garantir a abertura do salão expositivo, cujo portão já era pressionado pelo barulho das pessoas do lado de fora. 

– Meus manos, tudo pronto para abrir?

– Sim. A iluminação foi ajustada usando a réplica que tínhamos aqui no Acervo. O original chegou e funcionou perfeitamente com o que já estava alinhado

–  Porque o cara era mestre em fazer tiragens, né? –  replicou Consp
–  Sem dúvida – prosseguiu Carinhoso – inclusive nesta obra, que teve três tiragens, mais a que está guardada aqui. E todas teriam o mesmo efeito debaixo dessa luz e nessa parede. É como se ele previsse que esse dia ia chegar.

– E quem pode garantir que ele não previu? – retrucou Zaim. 

Robson ingressa no salão com suas tradicionais roupas brancas já molhadas pela chuva. Com respiração ofegante, tenta chamar atenção de todos enquanto tira uma toalha da mochila. 

–  Povo, vamo abrir. Tá rolando o famoso “tem criança chorando” lá fora. Mas, no caso, só adulto mesmo. Mas tá abarrotado aí. Tem polícia, tem juiz, tem advogado, tem jornalista, artista, curador, educador… Meio circuito de arte veio e a gente precisa tirar esse povo do toró que tá caindo lá fora. 

Um trovão cai. E o estrondo se confunde com a abertura das metálicas e pesadas portas do Co-Vil. Pelas caixas de som, que antes eram amplificadores das discotecagens comentadas que aconteciam ali, o som de uma caixinha de música era a tentativa de diminuir o ritmo das pessoas e conter suas emoções. Todos caminhavam em direção ao único quadro na parede de fundo. Lá, os onze vilões esperavam aquela pequena multidão de pessoas, como quem estivesse preparado para um confronto.


E, como de costume, Ramo toma a palavra.

 

–  Hoje não é um dia de falar do Jeff, ou melhor dizendo, falar da morte dele. O que existe a respeito disso está abaixo do portal que diz “Aos mortos, daqueles que vão morrer”. Nós realmente combinamos de não morrer, mas quando um de nós morre, dedicamos uma habitação a eles. Que ao Jefinho, deixemos construída obra e legado a partir de hoje. 

Carinhoso assume a liderança do discurso, portando-se como um curador de arte contemportânea em uma abertura comum:

–  “Convergência” é o primeiro objeto que o Jeff chama de obra. Na época em que a primeira tiragem foi feita, esta que vocês veem, estávamos em nossa primeira residência e observamos a luta dele em um momento que todo artista tem ao iniciar uma carreira: afinal, o que é a tal da pesquisa, que todo mundo precisa ter? Ele imaginava que tudo o que era necessário para atuar como artista era o talento para desenhar. 

Carinhoso ensaia uma risada. Todos riem alto. Isso dura alguns segundos até que o silêncio volta, indicando que a fala do curador deveria continuar. 

***

A não muitos quilômetros dali, um conglomerado de prédios corporativos envidraçados também resistia aquela tarde chuvosa de sexta-feira. Em um dos andares, um outro grupo de pessoas se movimentava, vestidas com roupas sociais monocromáticas. Entre elas, surge detrás de uma divisória, um jovem usando um terno risca de giz. Descendente de orientais, baixa estatura, cabelos longos presos em coque, caminhando em velocidade com uma pasta de documentos. Ele parece perseguir uma pessoa específica.

– Senhorita Tigerlilly, eu preciso de uma reunião com Dustin, e precisa ser imediata!

– Senhor Hatsuke, parece que você não é o advogado principal de Dustin Prince há mais de quatro anos. É impossível entrar sem avisar naquela sala. Você sabe bem disso!

O escritório percebe o início de uma discussão calorosa e baixa o volume das discussões, a fim de acompanhar o assunto. Pudera, pouca coisa seria capaz de fornecer tanta informação extra quanto uma discussão entre a secretária e o advogado do chefe. Mas, como bons jogadores, os dois percebem a movimentação e baixam o tom de voz. 

– Eu quero me retirar do caso. Não há mais o que fazer com as autoridades policiais, não tenho mais o que dizer no ministério público. Jeff já está enterrado e todos viram isso ontem. O que mais o Dustin quer que eu faça?

–  O senhor está visivelmente alterado, senhor Hatsuke. Eu entendo que toda essa situação o deixou abalado, como abalou toda a cidade que acompanha esse caso há anos. Descanse um pouco e aguarde seu alinhamento semanal com Prince, sim?

–  Eu odeio o fato de que deixei de ter acesso a quem eu imaginava que era meu melhor amigo e agora preciso esperar uma agenda para compartilhar um sentimento com ele.

–  Ele não te atende o telefone?

Hatsuke mantém seu olhar fixo na secretária de cabelos ruivos e terno listrado, que prossegue, em tom irônico:

–  Eu sinto muito. O silêncio é uma resposta dolorosa nesses casos. O máximo que posso fazer é avisar ao Dr. Prince que o senhor esteve aqui. Te ajudo com mais alguma coisa hoje?

Com lágrimas nos olhos, o advogado segue no caminho de volta pelo corredor de onde veio, em direção à saída do andar corporativo. Seu telefone vibra em seu bolso, e em um ato reflexivo, verifica a notificação.

“@PrinceDus curtiu sua foto”. 

–  Filho da puta.