Eu acredito que todos nós pensamos bem quando ouvimos a seguinte pergunta (mesmo que não nos seja dirigida):
“Que pessoa famosa – que não está mais entre nós – você gostaria de encontrar?”
A minha resposta é simples para quem já me conhece. Obviamente, seguramente e claramente Frida Kahlo. Quando penso nesse encontro consigo me sentir estimulado em mais de um sentido. Sua saia colorida sendo arrumada diante de mim, e a mistura dos aromas característicos que pude sentir no México, com nicotina, por supuesto. Não imagino que ela me abriria um sorriso. Por algum motivo, Frida não me inspira acolhimento. Nossas mãos estão dadas na dor constante, no signo astrológico, no amor pela arte, nos amores impossíveis (devotos, entregues e não correspondidos)… Não em simpatia. Na realidade, acredito que ela me acharia um moleque estranho e até daria uma risada ao me ver, ainda que internamente.
O que eu perguntaria a ela? Te confesso que já fui ao México pessoalmente pisar na Casa Azul para fazer a pergunta: “Como você transformou a sua dor em arte e legado?”
A biografia de Frida Kahlo, que se tornava viva aos meus olhos à medida que eu caminhava pelo jardim da casa de Coyoacán e observava fotos da artista vivendo em seu jardim, deixa muita coisa clara. Há poucas pontas soltas aqui, e eu não entendo onde existem as vagas para que as pessoas pintem para si mesmas uma Frida Kahlo rasa, na estampa de uma bolsa, que não tem nada a ver com quem ela realmente foi.
Uma mulher à frente do seu tempo? Sim. Alguém que rompeu paradigmas, trazendo o artista como protagonista de sua arte e objeto de sua narrativa? Também. Me atrevo a dizer que, se falamos de ícones pop, não existiriam as artistas que hoje abrem sua intimidade com tanta liberdade sem o caminho aberto por Frida. Em hábitos e costumes, os filmes nos ajudam a plasmar a figura de uma mulher libertária.
Acontece que essa mulher libertária não era uma mulher livre.
Desde se vestir como uma Oaxaqueña, até trançar os cabelos, pintar, se relacionar com várias pessoas, inclusive ser uma intelectual… Tudo isso tinha um lugar em sua alma, uma verdade em seu coração, mas por trás de cada camada, existe um universo que preenche todas as coisas, como o Universo realmente faz. Esse universo tem um nome, dado por ela mesma: Diego.
Partindo da admiração de Diego Rivera pelas tradicionais mexicanas, Frida pinta em si mesma um quadro de uma mulher digna de ser admirada. Por seu legado artístico, ela meramente o segue, remontando em diversos momentos a aluna adolescente em busca da sincera opinião de seu professor. Por causa de sua infidelidade, ela decide fazer o mesmo que seu marido, para aplacar a dor das subsequentes traições. Sexo livre por fora, monogamia no coração. Por considerar este homem o mais inteligente de todos, ela sabe que não pode ser uma flor com menor fragrância intelectual que outras… Ou veria sua mariposa voar para longe.
Alguns minutos depois de deixar a Casa Azul, fui ao estúdio de Diego Rivera, em San Angel, a uns quinze minutos de carro. Não fiquei surpreso com o que vi. Por mais que se chame aquele lugar também com o nome de Frida, pois muitas telas importantes da artista foram pintadas na casa-estúdio de arquitetura arrojada para a época, Kahlo aparece ali apenas duas vezes: uma banheira suja de tinta, usada como base para “Lo que el água me dio”, e um pequeno porta-retrato em uma mesa de canto, com uma Frida impaciente numa foto sem cor. Fica claro: Diego era o Universo de Frida. Frida era apenas um capítulo da história de Diego.
Talvez essa tenha se tornado minha tela preferida de Frida porque, com ela, a minha pergunta estava respondida. Sabe, eu acredito que todos nós tenhamos nossos Diegos. Pessoas, coisas, lugares ou projetos a quem chamamos “meu amigo, meu amante, meu esposo, meu pai, minha mãe, meu Universo”. Também te confesso que escrevo esse parágrafo com o coração cheio de angústia: seria minha vida devotada e condenada a estar limitada a repousar dentro de um “Diego”? Toda exposição tem limite e deixo aqui uma pausa dramática para que você reflita sobre os seus Diegos, enquanto me resguardo a não dar nomes aos meus.
No alto de uma das paredes da Casa Azul, uma frase pedia uma pausa em meus questionamentos: “eu não creio que as margens de um rio sofram por deixá-lo correr”. Poucos conseguem captar, mas a maioria das lindas frases de Frida (que amamos repetir) foi dita em contextos de muita dor, física e/ou emocional.
Ok, a dor não se vai. Não existe um plano de ação para lidar com ela. Sem pílula mágica. Sem receitas. Sem ponto 1, 2 e 3… Frida me ensina a sentir, viver e contar a dor. Em cor. Em arte. Como no quadro pintado na banheira, é sobre contar uma história e esperar que aqueles que se identificam com ela se juntem a mim, e talvez me deem a mão, como eu dei a mão à Frida.
“A dor e o sofrimento não me parecem partes da vida. A dor e o sofrimento são a própria vida”.
Um dos nomes que Frida Kahlo dava, com seu modo irônico e jocoso de sempre, ao seu grande amor era “sapo”. Ela tinha consciência da feiúra de Rivera e o chamava assim. Qual foi a minha surpresa ao ser avisado que as cinzas de Frida estavam ali em seu quarto, dentro de um vaso escultural pré-hispânico, da coleção pessoal de Diego Rivera. A escultura de um sapo.