Durante minha vida toda, eu conheci muita gente que alegava ter um coração inteiro. Uma vida sem rachaduras. Uma personalidade restaurada. Passando os anos e observando tudo com a sábia distância que o tempo me dá, percebi que essas pessoas eram as piores e mais tóxicas que já passaram por mim. Com foco no que quero escrever, afirmo: um coração inteiro, sem fissuras, simplesmente não é humano. E quando se perde a humanidade, se é capaz das piores atrocidades.
Mesmo Deus sabia que precisava de um coração partido, e desceu, para se dividir em oito bilhões de pedacinhos.
O coração se quebra sem sentido. Ouvindo um amigo na semana passada, ele me disse sem rodeios: “tudo o que você já viveu na vida só parecia dor. Agora te dói de verdade”. Ele estava certo mesmo. A dor de coração é real, e eu levei mais de três décadas para conhecê-la já adulto. É um golpe que te faz perder o ar e toda a atitude que você tem é a de levar a mão ao tórax, como se você pudesse conter todos os pedaços antes que eles caiam no chão, até porque já se sabe o trabalho que dá ir atrás de todos eles.
Enquanto lidava com o trauma, fui compreendendo que todo coração se quebra por um motivo claro: só um coração quebrado pode lidar com todas as circunstâncias da vida como ela se apresenta a nós. Ao mesmo tempo (e o tempo todo) temos que controlar o mosaico da alegria, dor, tristeza, realização, frustração, confusão, liberdade e solidão. Tudo junto e sem intervalo para beber uma água. Parte de mim doía. Outra parte estava feliz e realizada. E eu conseguia sentir as duas coisas, sem ignorar a dor e a delícia de uma circunstância e da outra. Confesso que foi o momento em que mais me senti maduro, talvez em minha vida inteira.
E aí a gente começa a dar passos para trás. Depois do acidente, do coração espatifado pelo chão, inicia-se o processo de buscar os pedaços e entender o que aconteceu. É uma cena familiar se você já quebrou um prato ou uma tigela por acidente em casa. Andamos devagar, reconhecendo os pedaços primeiro com o olhar e depois partindo para ir atrás de cada um, à medida que nos recuperamos do susto e nos sentimos seguros para seguir procurando sem nos causar mais um machucado.
Independente se a opção para o objeto quebrado seja a restauração, nos sentimos aliviados quando identificamos que encontramos todos os cacos momentaneamente perdidos. Isso evita a possibilidade de novos acidentes. É quando olhamos para cada uma das partes e conseguimos identificar cada uma delas. É quando conseguimos contar e discernir cada uma: alegria, dor, tristeza, medo, felicidade, confusão, liberdade, solidão, esperança, dúvida… Não sentimos mais uma coisa só. No fim, cada um desses sustos e acidentes nos preparam para encarar os dias com a complexidade que eles exigem, especialmente em momentos como os que vivemos hoje.
Um coração partido precisa parar para contar seus pedaços. E falar várias vezes de cada um daqueles sentimentos, assim se consegue encontrar os espaços onde cada um deles se encaixa outra vez. Quem me conhece há mais tempo sabe que fui um entusiasta da reconstrução de cerâmica: reduzir os pedaços a pó, acrescentar água e começar de novo. Com trinta e quatro anos, tanta dor já não me interessa. Quando me frustro, não começo mais do zero. Começo em cima de uma experiência, com um medo óbvio de me quebrar de novo, mas entendendo que meus cacos são partes do processo que me fazem uma peça única de arte. Kintsugi, como fazem meus amigos japoneses. Minhas rachaduras valem ouro, agora. Eu preciso seguir acreditando.
É claro que isso me lembra dona Iva, minha querida avó. Ela fazia vasos de cimento que eram decorados com louças quebradas. Pedaços que iriam para o lixo. Eram itens únicos, cobertos de lindos acidentes. Fico imaginando o trabalho que ela tinha para dar um novo sentido a cada um daqueles restos de porcelana. No fim, o resultado era colorido e cheio de brilho, como um vitral ou um mosaico. Eram um símbolo de seu próprio coração quebrado, que nunca foi refeito, mas seus cacos – outra vez juntos – brilhavam.