Uma das sensações mais malucas que pude viver na vida é a sensação de ser um fantasma. Essa figura mitológica sempre me intrigou: alguém que viveu a vida num determinado lugar e passeia por essa realidade, enquanto ela continua. Uma lembrança ambulante, uma recordação que revisita os cenários onde existiu… É uma despersonificação dolorosa e lenta, que tem as mais diversas origens de raciocínio: ou se trata da negação de um processo de luto, onde os enlutados têm tanta dificuldade de aceitar a ausência que justificam tudo com uma suposta presença; ou se refere ao fato de que pessoas podem estar tão ligadas a coisas, casas, propriedades ou outras pessoas, que nem a morte criaria um cenário de ausência.
Eu, de modo muito pessoal, acredito que a ideia do fantasma foi criada a partir de uma dor que acontece antes da morte: não saber fechar um ciclo. Isso mesmo, a dor de sair de uma história. É em vida que perambulamos, como os tais fantasmas, através de cenários, de sentimentos ou de mensagens de whatsapp que já não pertencem mais ao nosso mundo. A sensação de ter visto “meu tempo passar” e retornar aos lugares onde vivi, e ver as pessoas vivendo normalmente, é algo recorrente na minha vida.
Sempre que retorno à minha cidade natal, é bem isso. Maceió é a mais linda das cidades, e talvez fosse esse um fator especial para que eu tivesse uma grande elasticidade emocional. Esquecer a dor, com o sol, o calor e a beleza daquele mar azul que só tem lá… É muito mais fácil. Me lembro dos tempos de adolescência, dos ataques homofóbicos (em seu sentido mais bruto) e do bullying na escola. Me lembro como isso era superado rapidamente, dia após dia, com pés molhados na areia e uma noite de sono. E eu daria tudo para recuperar essa minha habilidade.
Hoje, caminho pela cidade como um fantasma. Meu cabelo mudou muito, meu corpo mudou, minhas roupas mudaram. Nesse momento da história todos usam máscaras. Ninguém mais sabe quem sou eu, por ali. Não sou reconhecido em lugar nenhum. Me sinto uma lembrança do passado caminhando pela rua, não exatamente um ser vivo. Praticamente invisível. É um nó na garganta difícil de tirar.
Entre os meus amigos, mesmo os próximos, a sensação é bem essa. Passar a pior crise da sua vida, ver estremecida a minha carreira, meu casamento, meus projetos, meus anseios para o futuro… Sem nenhuma reação. Sem ligações ou convites para tomar café. O momento é atípico, eu sei. Todos preferem olhar para dentro de si – e me parece que não têm outra escolha – em vez de olhar para o outro. Dessa vez, eu fui o outro que não foi visto. A sensação é de que estou vivo, mas não estou ao mesmo tempo. Vivo o suficiente para um like (ou para um pedido de design a baixo custo), morto o suficiente para não ser lembrado. “Como você está?”
”Não é importante apenas saber fechar ciclos, mas é importante também saber a hora de fazê-lo
Esse pensamento fecha um ciclo. Desde 2019, minha intuição me fala que é hora de seguir sozinho. A vida toda foi sempre sobre fazer parte de uma comunidade ou um grupo, e eu deveria lançar um investimento em estar comigo e colaborar comigo, me priorizando e cuidando de mim, sem me importar com os outros. Desde 1998, eu faço parte de uma igreja local. Foram várias as denominações evangélicas mas a “igreja” sempre esteve ali. Ela se tornou o maior laboratório da minha formação profissional. Foi entre um domingo e outro que aprendi tudo o que sei e cresci como nunca. Desde o processo criativo até recolher o aprendizado do resultado do design nos olhos das pessoas.
Meu trabalho sempre foi a melhor forma de contribuir com a igreja e ajudar em seu crescimento. Foi quando me enxerguei revivendo processos, preso em situações emocionais de onde eu já deveria ter saído. Há 12, 14 anos talvez. Quando me vi, eu já era um fantasma. Nos poucos domingos de flexibilização, eu retornava ao ambiente de culto e uma pessoa ou outra me reconhecia ali. Minha presença não era necessária e minha ausência não era sentida.
Confesso que nunca vivi nada tão difícil do que entender que esta era a hora de terminar esse ciclo. Não é importante apenas saber fechar ciclos, mas primeiro vem a hora de fazê-lo. Há um timing, hermético como o da morte, para sair de cena. Uma deixa, uma fala, um modo de deixar a história continuar, mantendo sua parte como uma boa lembrança.
No meio desse processo, com uma touca de hidratação na cabeça, eu recebi uma ligação de uma velha amiga…
[Continua no Capítulo 07]