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Eu conseguiria descrever para mim mesmo o que seria um cheiro alcalino, mas tenho dificuldade de colocar em palavras para que você que me lê, entenda. É um cheiro que tem uma mistura de curry e açafrão. Não é perfumado. É marcante e forte. Era esse cheiro que eu sentia, enquanto não conseguia abrir os olhos. O chão era irregular e rígido ao mesmo tempo: eu não conseguia sentir meus dois pés retos em uma superfície, e não conseguia discernir em que direção andar. E essa foi uma forma mais complexa de te dizer que estava paralizado.
Ouvi um sibilar muito familiar subindo de uma das frestas no piso. E só então, segundos depois, eu abri os olhos. Uma serpente branca como todo o salão branco do refeitório, esguia e determinada, se ergueu do chão até a altura dos meus olhos. E, como eu poderia prever numa história mítica, ela falou.
— Então quer dizer que é assim que Deus disse? Perguntou a serpente.
— Me parece que sim, respondi.
E não vi sentido algum no que estava respondendo. Na verdade, eu só tinha muito medo do que aquela cobra gigante poderia fazer comigo numa versão destruída do refeitório da penitenciária. Continuamos nos encarando com muita firmeza. Eu consciente que seria vítima de um bote em qualquer movimento brusco, mas ao mesmo tempo, eu percebia que ela também estava com medo. Ela continuou:
— Você não vê sentido em sua resposta porque realmente não faz a mínima ideia de quem você é.
— De algum modo eu deveria saber?
— Se você soubesse, não precisaria estar aqui. A boa notícia é que ninguém vai aparecer muito disposto para te ensinar, mon chéri. Na realidade nunca apareceu. Todo mundo está muito ocupado correndo com suas coisas e sua própria vida. Você sabe, sim? Trabalho, profissão, dinheiro, relacionamentos, viagens, feriado, eletrônicos, namorados, festas, arte, circuito cultural, remédios, doenças, tragédias mundiais, desastres climáticos, ações na bolsa, organizações não-governamentais, recursos, política…
A serpente respira fundo e prossegue:
— Nem terminei a lista toda e me sinto profundamente cansado. As pessoas estão assim, muito cansadas para muita coisa… Principalmente para se importar com a existência de alguém que nem faz ideia de quem realmente é. Se você realmente soubesse, apontaria para si e as pessoas teriam para onde ir. Se você não sabe quem é você, como direcionar alguém para um lugar que você não sabe onde fica? Você é um não-lugar, por isso ninguém está aqui.
Meus joelhos foram direto para o chão irregular. Doeram mais que o normal por atingir alguns pequenos pedregulhos. Aparentemente tinha perdido o medo daquela grande serpente. Não fazia diferença o que ela me fizesse. Fechei os olhos e entendi que não apareceria ninguém para me ajudar, até sentir uma mão sobre meu ombro esquerdo.
— Zé gordinho!
E tudo desapareceu.
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— Eu queria ter deixado o cabelo crescer como o seu está agora, Jefinho. E você sabe que eu tentei fazer isso em alguns momentos da vida, mas…
— A mãe sempre te obrigava a cortar o cabelo. Comigo era assim. Esse cabelão só funcionou depois que eu saí de casa. Na última vez que a gente se viu, em Campos do Jordão, eu nunca mais cortei o cabelo daquele jeito.
— Eu sempre gostei do fato que não tivéssemos o mesmo cabelo. No fundo, eu sempre amei que você era um homem muito diferente de mim, ainda que seu corpo seja igual ao meu, com o rosto da Tereza. Eu não achava que o meu exemplo era remediável, e você encontrou sua própria inspiração pra ser você. Isso me deixava orgulhoso. Deixa, na verdade.
— Ser… Eu? Quem sou eu? O senhor sabe a resposta?
— Com a cabeça no peito do seu pai, não te sobram muitas respostas. Aqui você é só o meu filho. E não acho que você vai conseguir mais definições além disso. Nesse espaço de segundos no meio da narrativa, eu sou o seu pai e você é o meu caçula. Me basta. E pelo brilho dos seus olhos de botão, basta pra você também.
— Mas não basta para quando eu sair daqui e voltar pro batente.
— Não. Lá fora, de um jeito ou de outro, você vai ficar esperando que alguém saia falando sobre uma versão de você que te agrade. E eu queria muito ser a pessoa que vai te trazer a consciência de que a opinião de ninguém é tão necessária para que você aprenda. Nem a dos seus professores, nem a dos críticos de arte, nem a do tal Dustin, muito menos o que o Ministério Público tem a dizer.
Jeff se surpreende que o Sr. Reinaldo sabia de como estava correndo todo o processo, em detalhes. Os seus olhos se arregalam enquanto os dois olham para as janelas do salão onde estão, deitados numa grande poltrona dourada.
— Seu pai está vendo você arregalar esses olhos, mesmo deitado atrás de você. A sensação de conhecimento ilimitado é muito boa, mas na tua mão, não sobrava nada nem ninguém em pé, Jé Rodrigo.
Os dois começam a rir.
— Painho, eu vou conseguir?
— Eu não posso prever o futuro, gordinho. Gostaria muito. Mas, como sempre fiz na vida, posso me sustentar no que eu acredito: eu acredito que você tem todas as condições de conseguir provar sua inocência e atravessar sua vida, sendo quem você é. Uma coisa que sua mãe batalhou muito para que acontecesse, na verdade nunca deixou de ser um fato.
— Do que o senhor está falando?
— Do fato que você sempre teve o que precisava. O que você não tem, não precisa ter agora. Nada te falta, mesmo que alguém te olhe e possa dar um palpite de que tem alguma coisa faltando. Na realidade, essa é a sua forma de viver, Ou melhor, as suas formas.
Reinaldo termina a frase apontando para as janelas que começam a mudar de forma. Algumas permanecem quadradas, outras arredondam seus cantos, outras viram triângulos, círculos, pentágonos. Tudo assume uma forma diferente.
— Jefinho, vá dar uma olhada em como o céu está fechado.
Jeff se levanta da poltrona e percebe que o céu segue fechado, mas surpreendentemente não está branco. Ele consegue perceber todas as cores por trás das nuvens, que permanecem brancas. Um grande degradê de vermelhos, laranjas, azuis, verdes e rosados. Um sinal no céu
— Meu filho, eu sei que você conhece esse sinal. Ele está na família do seu avô desde o começo de tudo. Esse céu é nosso, sempre foi. Não é a toa que eu dizia a todo mundo que, sim, era possível chegar lá.
— Meu bisavô, o senhor quer dizer?
— Qual dos seus avós falava hebraico, Jefferson? É claro que estou falando do seu bisavô.O único que sabia o que é um Qeshet. E você aprendeu direitinho anos depois, lembra?
— O sinal que tudo vai passar.
— Não importa a placa de neve sobre esta manhã, existe um sinal nas nuvens dizendo que, uma hora essa tempestade passa. É o significado do arco-íris em todas as chuvas no planeta todo. Quando eu caminhava pelos corredores de St. Leonard, eu olhava essas janelas, todas quadradas e enormes. Já vi o céu de todos os jeitos sobre a universidade que você estudou. Já vi dias lindos, como nossa cidade é conhecida no país todo, já vi dias turbulentos, brancos, cinzentos… Eu diria que até bem pretos. E nesses, nem sabia se iria voltar para casa.
Mas aqui está o maior dos meus segredos, que não tive tempo de te contar antes de voltar daquela viagem: quando você olha pra vida através da sua forma de ser, vai achar a resposta da sua pergunta. E não fui eu que te respondi, mas parece que temos uma resposta aqui, não acha?
Jeff respira fundo.
— Mas, falta muito.
— Boa notícia. Falta muito. Ainda dá bastante tempo para executar tudo o que você precisa fazer, como eu tenho plena confiança no que fiz. Isso, você pode ficar tranquilo para copiar do seu pai, combinado?
Enquanto Jeff assente com a cabeça, seu pai volta a se colocar atrás dele, com a mão em suas costas.
— Agora vai, meu filho. Você teve o suficiente aqui. Vai lá viver por você, e por mim.
Jeff sente um empurrão gentil e um vento em seu rosto.
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— Que dia, hein meu amigo? – Diz a Inspetora Farias, com um copo de suco de limão em uma das mãos, com um sorriso franco e gentil – Você quer um pouco de suco de limão?
— Obrigado, Inspetora. Oh não, estou de novo na enfermaria?
— Sim. É a terceira crise de pânico em um mês. Desta vez, Cruz e os agentes te sedaram depois do seu desmaio à caminho da sala de visitas. Eu nem posso te julgar, eu muito provavelmente teria a mesma reação se tivesse percebido que teria que encontrar alguém que me fez…
O olhar da Inspetora se perde e ela “engole” o raciocínio, como se uma lembrança pousasse em sua mente, mas por pouco tempo. Prontamente, ela se recupera e volta a olhar Jeff deitado em um dos leitos da enfermaria central do presídio.
— Você segue aqui no soro enquanto eu continuo trabalhando nas emissões das medidas protetoras para que Dustin Prince não apareça mais aqui. É o mínimo de respeito que você precisa às vésperas do Natal. Mas o time jurídico dele já deve saber do que está acontecendo.
— E… O que está acontecendo?
— Eu queria te contar como um presente nos próximos dias, mas até isso o filho da puta do Prince consegue estragar. Ele fez o movimento de vir te visitar porque ele já sabe que o Ministério Público vai te conceder um parecer para contar a sua versão da história, e ir em busca das provas de que o Nosso Coração não foi quebrado por você.
— E como eu vou fazer isso?
O Detetive Costa, um jovem moreno e barbudo, usando grandes óculos, entra na enfermaria com a resposta da pergunta que Jeff acabava de fazer. Costa era um renomado detetive, treinado como agente secreto desde a adolescência. Em um contraponto, sua aparência era de um nerd. Com óculos clássicos e camisa xadrez. Sua feição, muito provavelmente, se tornara sua grande arma secreta. Era interessante perceber que aquela reunião importante acontecia em volta de um leito hospitalar. O fato é que a rede de apoio do Jeff parecia muito ansiosa para trazer um sinal tão alentador em dias frios como aquele.
— Buscando os fragmentos do Nosso Coração um a um. Assim fica provado que você tem interesse na recuperação da peça, e o mais importante: você não sabe onde ele está, e vai levar um tempo aí, procurando. É a história que a gente precisa contar. O melhor? É verdade esse bilhete!
Costa está empolgado e sorri para a inspetora, que tenta manter seu comportamento austero. Ela toma a palavra e se dirige a Jeff:
— A equipe do Dustin é ardilosa e vai fazer de tudo para impedir esse movimento. De fato, você vai fazer suas malas e sair em busca do Nosso Coração, sendo parte da solução do problema. O medo do Dustin é que, obviamente, tudo vai respingar nele. Provar a sua inocência, é prová-lo culpado. Isso te tiraria do lugar de cúmplice num novo julgamento, como o Costa explicou.
— Preparado pra deixar St. Leonard, Jeff?
Jeff não poderia acreditar no que estava ouvindo. Ele poderia fazer suas malas e sair do lugar onde estava preso há mais de três anos. Apesar do medo que sentia sobre como viver a vida fora dali e recomeçar, lembrou-se do que tinha acabado de viver e respondeu em prontidão:
— Recentemente, eu aprendi que tudo vai passar se eu olhar para as circunstâncias através da minha forma de ser. Sempre há esperança do outro lado da janela. Se a melhor opção pra mim é a liberdade condicional, vamos atrás dela.
— Mas antes vai terminar o soro, descansar e se preparar para partir com calma, certo, rapazinho? – Interrompeu a Inspetora – tenha consciência que é esse ano que você vai resolver a sua vida e tomar o controle de como se conta a sua história.